Zelensky proíbe jogos de azar para Exército ucraniano após casos de dependência: ‘Penhoram drones e câmeras térmicas’

Soldado ucraniano controlando drone em Donetsk, no Leste da Ucrânia
Soldado ucraniano controlando drone em Donetsk, no Leste da Ucrânia — Foto: Tyler Hicks/The New York Times

A última vitória do sargento ucraniano Pavlo Petrichenko, de 31 anos, ocorreu longe do campo de batalha: foi em Kiev, no escritório do presidente Volodymyr Zelensky, que na última sexta-feira decretou a proibição dos jogos de azar nas Forças Armadas do país. A medida foi aprovada após uma iniciativa popular que conseguiu somar mais de 26 mil assinaturas em março. Ela exigia uma solução para o crescente vício em jogos de cassino e apostas online entre as tropas da Ucrânia. O promotor da ação foi Petrichenko, mas ele não pôde comemorar: morreu em combate poucos dias antes, na segunda-feira passada.

“Distinto senhor presidente, eu, Pavlo Petrichenko, soldado da 59ª Brigada, quero chamar sua atenção para o dano que o negócio das apostas está causando ao Exército ucraniano e à sociedade ucraniana”. Assim começava a petição dirigida a Zelensky em 29 de março e que motivou a aprovação do decreto três semanas depois. A lei ucraniana obriga o presidente a considerar uma petição popular que tenha pelo menos 25 mil assinaturas.

“O pessoal militar está longe de suas famílias pelo terceiro ano seguido, em condições estressantes e sem possibilidade de um descanso adequado, o que os torna especialmente vulneráveis psicologicamente. Para muitos, o jogo é a única maneira de lidar com o estresse, o que rapidamente leva a uma dependência de dopamina e prejudica o autocontrole deles. Há casos de soldados viciados em jogos que gastam todo o seu dinheiro e pedem empréstimos, endividando suas famílias. Eles até mesmo penhoram drones e câmeras térmicas”, acrescentou.

Os militares têm muitas horas livres durante a guerra, que passam principalmente com seus telefones celulares. Um pelotão de infantaria, por exemplo, faz rotações de quatro dias nas trincheiras, período sob enorme tensão. Depois, passam mais quatro dias na retaguarda com atividades menores. Os cassinos online, nesse cenário, são uma saída para distrair a mente. Em 30 de março, Petrichenko disse à imprensa local que, com base nas coisas que viu, “este é um problema enorme”. Diante do estresse da guerra, afirmou, “o telefone é o único alívio e acesso fácil a um entretenimento que pode ser viciante”.

O decreto de Zelensky inclui muitas das medidas que Petrichenko propôs. A principal é a proibição dos jogos de azar durante a lei marcial para o pessoal das Forças Armadas, seja em estabelecimentos físicos ou online. Esta última restrição, de difícil aplicação, será responsabilidade dos comandantes das unidades. A nova regulamentação também exige que empresas de jogos estabeleçam um limite de tempo e de gasto para os usuários. O governo negociará para que companhias como Apple ou Google ofereçam apenas opções regulamentadas aos ucranianos.

— O que um soldado ganha em um ano ele pode perder jogando — disse Petrichenko em sua última entrevista. — Servindo no Exército, ele recebe um salário alto (cerca de 2 mil a 3,2 mil euros), mas pede à família que lhe envie dinheiro. Este é o primeiro sinal que a família recebe de um jogador. Os familiares e conhecidos devem estar atentos a ele.

Sete veteranos de guerra explicaram ao El País os problemas de dependência que os militares com transtornos pós-traumáticos sofrem quando retornam à vida civil, seja dependência de álcool, drogas ou jogos. Por isso, o decreto também indica que o Ministério da Saúde deve criar um protocolo de tratamento e a formação de médicos e terapeutas. A medida restringirá a publicidade das empresas de apostas, proibindo que usem, como método para atrair clientes, o argumento de que parte de suas receitas serão doadas às Forças Armadas. Ela também estabelece que o Banco Nacional da Ucrânia recomendará às entidades financeiras métodos para bloquear as contas bancárias de clientes que gastam excessivamente com empresas de apostas.

Andrii Kozenchuk, oficial do Exército e psicólogo, comentou em 3 de abril na Radio Svoboda que tinha dúvidas sobre a eficácia de proibir os jogos, mas concordava que limitar o gasto e o tempo para os usuários poderia ser a melhor opção. Ele afirmou que é um “exagero” dizer que as Forças Armadas estão “cheias de viciados em cassinos”, mas ressaltou que “também seria errado dizer que está tudo bem”. Segundo Kozenchuk, os soldados se sentem “envergonhados”, embora os casos em que as pessoas perdem tudo e pedem empréstimos sejam “isolados”.

O funeral de Petrichenko coincidiu com o dia em que Zelensky assinou o decreto. O sargento se alistou como voluntário no início da invasão russa, em fevereiro de 2022, e participou como operador de reconhecimento aéreo da 59ª Brigada Motorizada na expulsão dos russos da província de Mykolaiv e de parte da província de Kherson. Ele foi citado pelo presidente como um exemplo de “patriotismo e valores cidadãos”.

Petrichenko também era conhecido em Kiev por sua longa carreira como ativista. Participou da Revolução Ucraniana de 2014, que derrubou o presidente pró-russo Viktor Yanukovych. Mas ganhou popularidade principalmente como ativista anticorrupção. Petrichenko liderou em 2018 o movimento cidadão que exigia que a justiça investigasse o assassinato da ativista Katerina Handziuk, que revelou um caso de corrupção na prefeitura de Kherson. O soldado ainda ganhou destaque durante a guerra como promotor da Fundação Prytula, uma das mais importantes na arrecadação de doações para as Forças Armadas.

“A Ucrânia está perdendo seus melhores por causa da guerra genocida da Rússia e das deficiências de alguns de seus aliados”, escreveu nas redes sociais outra conhecida organização cidadã de apoio ao exército, Saint Javelin. “Sua morte é outra grande perda para o futuro da Ucrânia”.

Fonte: O Globo

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