Vivi para contar: ‘Sofro o que os negros sofrem, mas não posso ser pardo?’, questiona cotista vetado pela USP

Glauco Dalalio do Livramento, de 17 anos
Glauco Dalalio do Livramento, de 17 anos — Foto: Arquivo pessoal

“No nono ano me perguntei ‘o que eu queria ser quando crescesse?’ e pesquisei no Google: ‘Top 10 profissões que pagam melhor’. Vi entre elas a de juiz. Dali em diante, comecei a ler mais sobre isso. O dinheiro pode ter sido um fator inicial, mas comecei a gostar demais de direito. É como a batalha do bem e do mal, me apaixonei pela ética da profissão. Percebi que não adiantaria ser outra coisa.

No último ano do ensino médio, sabia que não teria dinheiro para cursos preparatórios. Meu pai é auxiliar de obra da prefeitura, minha mãe, atendente de telemarketing. Tive de me tornar jovem aprendiz para ter mais condições financeiras. Trabalhava das 8h às 12h e estudava de 14h30 até 21h30. Me sentia numa rotina de adulto trabalhador.

Tive sorte que a minha escola era integral, com professores excelentes. Meu professor de matemática pegava provas do Enem, a gente se sentava e respondia juntos, por mais de um mês. Quando fiz o concurso, tirei 720 nessa área de exatas.

Além do Enem, concorri na Fuvest e no Provão Paulista. A aprovação foi engraçada, porque quem viu para mim foi o meu professor. A página com as informações estava sobrecarregada com a quantidade de pessoas acessando ao mesmo tempo, deixei para ver depois. Vieram me parabenizar. Tomei um susto.

Fiquei muito feliz, contei aos meus pais e meu irmão, todos comemoramos. Não contei para mais pessoas. Mas nem precisei espalhar, falaram por mim. Vieram amigos, parentes e até desconhecidos me parabenizarem. Meu chefe disse que me colocaria em outra filial da empresa, mais próxima da faculdade.

Algum tempo depois, eu estava atrás de moradia em São Paulo (sou de Bauru), e recebi a primeira negativa por e-mail. A banca de heteroidentificação classificou a minha foto como inconclusiva. Achei estranho, mas não liguei muito.

Mas veio a videochamada. Me apresentei, li a minha autodeclaração, desligaram e acabou. Pensei que estive tudo bem. No outro dia veio a negativa em maiúsculas: ‘Matrícula cancelada’.

Desde sempre fui ‘zoado’. Brincadeiras que descendentes de negros sofrem. Até xingamentos já sofri. Como passei por esse tipo de preconceito durante toda a minha vida, quando a banca me declarou branco fiquei chocado. Sofro o que pessoas negras sofrem mas não posso ser considerado pardo?

Não culpo a USP. Num primeiro momento, fiquei muito claro na foto. Estava num lugar muito iluminado, os ângulos podem fazer a diferença e não me atentei. Mas na segunda etapa, mostrei que sou pardo. Era visível.

Conversei com a minha escola, pedi ajuda. Professores e a diretora entraram em contato com uma advogada. Eu tinha ficado receoso pois meus pais não poderiam pagar, mas ela afirmou que seria gratuito. “Eu escolho um caso ao ano para atender gratuitamente, e será o seu”, disse.

Tive a surpresa de ver uma profissional da área que tanto amo atuando. No escritório, com tantas pessoas compenetradas, me senti em casa. Mesmo sendo apenas a segunda vez que eu tive contato com uma advogada. Foi como ver um futuro não tão distante, mas não tão perto.

Quando iniciamos as conversas, ela me falou: ‘Eu vejo que você é pardo, se fosse mais claro eu não pegava esse caso’. Ela me cativou ali.

Depois de tanto trabalho e angústia, tive a vaga de volta. É como se tivesse passado duas vezes, me inscrito duas vezes na USP. Meu irmão estava na hora que recebi a resposta do recurso e ficamos os dois pulando e gritando pela casa. Falei com meus pais e todos vieram me parabenizar de novo.

Agora só quero ir para São Paulo, entrar no meu alojamento, me instalar e, se tudo correr bem, começar segunda-feira. Vou entrar com o pessoal da terceira chamada. E o melhor de tudo, no dia 11 é meu aniversário. No meu aniversario, estarei começando no meu sonho.”

*Em depoimento a Arthur Falcão, estagiário sob a supervisão de Luã Marinatto

Fonte: O Globo

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