‘Viajantes do aborto’: 171 mil pessoas se deslocaram nos EUA para fazer procedimento em outro estado

Ativista pró-aborto segura pílula abortiva em protestos nos EUA
Ativista pró-aborto segura pílula abortiva em protestos nos EUA — Foto: Drew ANGERER / AFP

Mais de 14 mil pacientes no estado americano do Texas cruzaram a fronteira com o Novo México para realizar um aborto no ano passado. Outras 16 mil saíram de estados do sul dos EUA com destino a Illinois, onde o procedimento é permitido. A Carolina do Norte atraiu quase 12 mil viajantes da Carolina do Sul e da Geórgia pelo mesmo motivo.

Ao todo, mais de 171 mil pessoas precisaram viajar para fazer um aborto nos Estados Unidos em 2023, segundo estimativas recentes, demonstrando os efeitos do acesso ao procedimento após a Suprema Corte revogar, em junho de 2022, o direito — estabelecido há meio século em todo país a partir do caso Roe vs. Wade. Desde então, os estados foram liberados para legislarem sobre a questão, e cerca de 20 deles proibiram ou restringiram a interrupção da gravidez.

Os dados, no entanto, mostram como o novo fluxo testa os limites das proibições estaduais para o aborto e destacam a natureza instável de uma questão que desafiará os políticos nas eleições de novembro.

As viagens para abortos fora do estado — seja para fazer o procedimento ou para obter pílulas abortivas — mais do que dobraram em 2023 em comparação com 2019, e representaram quase um quinto dos abortos registrados. Na quinta-feira, a Suprema Corte rejeitou um caso que havia restringido drasticamente o acesso ao aborto medicamentoso, permitindo que as pílulas permanecessem disponíveis para pacientes que viajam de estados com proibições.

A maioria das pacientes viajou para o estado mais próximo que permitia o aborto. No entanto, quem vivia no sul do país, onde 13 estados proibiram ou restringiram o procedimento, precisou ir mais longe.

Uma delas é uma mulher de 24 anos de Columbus, Geórgia, que pediu para ser identificada apenas por sua primeira inicial, A. Ela viajou para a cidade de Nova York no verão passado [inverno no Hemisfério Sul] depois de descobrir que estava com mais de seis semanas de gravidez, período em que a Geórgia não permite mais o aborto. Ela decidiu viajar durante um fim de semana em vez de se automedicar com pílulas em casa.

— Eu tinha que voltar ao trabalho na segunda-feira — disse ela. — Eu simplesmente não tinha esse tempo.

O Texas, o maior estado a proibir o aborto, teve o maior número de residentes que viajaram para além das suas fronteiras para realizar o procedimento, segundo os dados. Na outra ponta, nenhum outro estado recebeu mais pacientes de fora do que Illinois.

As pessoas nos estados em que o procedimento permaneceu legal também viajaram para fazer abortos, às vezes porque a clínica mais próxima ficava do outro lado das fronteiras estaduais ou porque o fluxo de pacientes de fora tornava as consultas mais escassas. Os dados mostram que os abortos aumentaram em quase todos os estados em que permaneceram legais.

Muitas pessoas enfrentaram dias de viagem e tiveram muitos custos. Mas há quem também não conseguiu viajar. Pesquisas anteriores descobriram que, no primeiro semestre de 2023, quase um quarto das mulheres que vivem em estados com proibições quase totais não abortaram.

— O aborto é um dos procedimentos mais comuns na medicina — disse Amy Hagstrom Miller, fundadora da Whole Woman’s Health, que administra clínicas em Maryland, Minnesota, Novo México e Virgínia. — Estamos fazendo com que as pessoas viajem centenas ou milhares de quilômetros para um procedimento que normalmente leva menos de 10 minutos e pode ser feito em um consultório médico. Ninguém faz isso para qualquer outro procedimento médico.

As novas estimativas são do Instituto Guttmacher, uma organização de pesquisa que apoia o direito ao aborto. O levantamento apresenta um retrato detalhado dos viajantes interestaduais e como eles ajudaram a elevar o número de abortos em todo o país em 2023. O estudo foi feito com base em uma amostra de clínicas em cada estado onde o aborto permaneceu legal.

Para alguns grupos contra o aborto, a sensação de vitória após a derrubada de Roe vs. Wade foi ofuscada pelo número de pessoas que contornam as proibições do aborto — e pela falta de vontade política de abordar a questão em um ano eleitoral.

— Estamos provocando alguns republicanos que se sentiriam muito confortáveis em dar uns tapinhas nas costas, concorrer à reeleição e depois se concentrar em outras questões que lhes interessam mais — disse John Seago, presidente da Texas Right to Life. — Nunca tivemos um senso de conclusão. Só vimos o outro lado intensificar seus esforços para promover o aborto.

A disponibilidade de pílulas abortivas atenuou significativamente o impacto de muitas proibições estaduais. Mas algumas pacientes ainda precisam viajar para consultar um profissional devido a uma condição médica ou ao estágio avançado da gravidez. Outras simplesmente preferem fazer isso.

— Eu não queria que as pílulas fossem entregues na minha faculdade — disse Mia, 20 anos, uma estudante universitária de Houston que pediu para ser identificada apenas pelo primeiro nome.

Em vez disso, em agosto passado, ela dirigiu 12 horas até uma clínica em Albuquerque.

— Caso algo desse errado, eu não sabia se poderia ir a um hospital — disse ela. — Achei que seria melhor ir pessoalmente e, dessa forma, saberia que tudo estava resolvido.

A clínica cobriu o custo do procedimento, mas Mia pagou cerca de US$ 500 pela gasolina, duas noites em um Airbnb e passeios de Uber para ir e voltar da consulta.

A explosão de viagens para fora do estado foi apoiada por clínicas e fundos de aborto, que ampliaram o acesso aos serviços e o suporte financeiro às pacientes.

— Agora temos lugares onde as pessoas que dirigiram a noite toda podem tirar um cochilo em nossas clínicas — disse Hagstrom Miller. — Temos sofás. Temos salas de espera específicas para crianças, com brinquedos. Trazemos sanduíches e comida.

Os estados com leis liberais de aborto também desempenharam um papel importante.

— Parece que as políticas de proteção que os estados estão adotando são importantes — disse Kelly Baden, vice-presidente de políticas públicas do Instituto Guttmacher. — Mas não deveríamos estar normalizando a dependência de redes de voluntários e doações.

Illinois investiu mais de US$ 23 milhões na expansão do acesso ao aborto e à saúde reprodutiva desde 2022. Os provedores do estado estenderam o horário das clínicas e aumentaram a equipe e a disponibilidade de atendimento ao aborto em hospitais.

— As coisas estão correndo muito bem — disse Allison Cowett, diretora médica da Family Planning Associates, uma clínica de Chicago cujo volume de pacientes dobrou desde 2018. — Nós nos adaptamos à velocidade das coisas. Esse é o nosso novo normal.

O Chicago Abortion Fund fornece, em média, cerca de US$ 880 para cada paciente que busca um aborto em Illinois, em comparação com cerca de US$ 545 em 2022, graças a doações e subsídios municipais e estaduais.

— Ainda parece precário: você não sabe quando a prioridade de uma única instituição ou de uma única fundação mudará — disse Megan Jeyifo, diretora executiva do fundo.

Na Flórida, a luta contra as restrições ao aborto está longe de terminar, com consequências para as mulheres de todo o Sul. O estado teve um aumento de 18% nos abortos no ano passado, incluindo quase 10 mil pacientes de fora do estado.

Uma proibição de seis semanas que entrou em vigor em maio já alterou esses padrões, e os defensores estão pedindo aos eleitores que preservem os direitos ao aborto na Constituição do estado em novembro.

Por enquanto, o estado mais próximo que oferece abortos depois de seis semanas de gravidez é a Carolina do Norte, que exige aconselhamento e um período de espera de 72 horas.

— É um pesadelo logístico — disse Kelly Flynn, diretora executiva da A Woman’s Choice, que tem clínicas na Flórida, Carolina do Norte e Virgínia.

Para evitar que as pacientes façam duas viagens para fora da Flórida, os médicos de sua clínica na Flórida são licenciados na Carolina do Norte para que possam realizar o aconselhamento obrigatório antes de a paciente viajar para o norte.

Fonte: O Globo

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