Tempos instáveis e excessos chineses

Trabalhadores chineses em fábrica
Trabalhadores chineses em fábrica — Foto: AFP

Fabiana D’Atri começou a acompanhar a economia chinesa quase sem querer. Economista do Bradesco, trabalhava com mercados emergentes na crise global de 2008 quando logo percebeu que o alvo principal deveria ser a China. Com o tempo, o ofício passou a rimar com vício. Não é algo incomum entre os que mergulham na árdua e estimulante missão de entender o que faz da China essa China que volta a ser superpotência.

Tornou-se uma das referências no Brasil sobre o assunto, sempre atenta às mudanças muitas vezes silenciosas em um país cujos rumos afetam cada vez mais todos os outros. O começo não foi fácil. Em sua viagem inicial à China, em 2010, D’Atri teve vontade de pegar o próximo avião de volta já no primeiro dia, ao ser expulsa de um táxi. Cinco meses depois, porém, estava de volta. Habituou-se a fazer o longo trajeto duas vezes por ano, e só parou em 2020, quando a China se fechou.

Na última sexta, D’Atri concluiu mais uma visita ao país, a segunda após o hiato forçado do período da pandemia. O objetivo, como sempre, foi sentir de perto o pulso da segunda maior economia do mundo. A conclusão, após dias intensos de observação e conversas no circuito Pequim-Xangai, foi de que houve uma mudança de foco em relação a seu mais recente desembarque na capital chinesa, em novembro.

Naquele momento, o principal assunto era a falta de confiança que predominava na economia. Nesse aspecto, sentiu um avanço, ainda que sutil: só de não ter piorado, já foi uma melhora, considera D’Atri. Mas ficou claro para ela que a conversa migrou para outra questão: o excesso de capacidade do país. Como a consequência doméstica disso é o risco de deflação, o movimento quase automático foi recorrer às exportações, como válvula de escape.

— Toda conversa começava com excesso de capacidade — conta D’Atri. — É o jeito chinês: eles são competitivos, então todos seguem na mesma direção. Os fortes sobrevivem, os fracos desaparecem e o mercado se consolida. Faz parte do processo produtivo e de sobrevivência. Não era assim seis meses atrás, muito menos antes da pandemia. Parece que agora virou uma verdade absoluta.

É uma verdade que gera tensão internacional, diante da apreensão de outros países em ter sua indústria devastada por uma enxurrada de importações chinesas baratas. Wally Adeyemo, subsecretário do Tesouro dos EUA, reiterou em fevereiro que a inquietação sobre a China não é mais a possível reação em cadeia de uma desaceleração acentuada, mas o impacto de seu excesso de capacidade na economia global.

Tais ruídos não se limitam à retórica de rivais. Os excessos chineses também inserem farpas na relação amistosa do governo Lula com Pequim. Nos últimos meses, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic) abriu meia dúzia de investigações sobre importações chinesas, sob suspeita de dumping — vender a preços inferiores aos do mercado local. Em junho o vice-presidente Geraldo Alckmin, que também chefia o Mdic, terá a oportunidade de abordar o tema cara a cara com os chineses durante sua visita a Pequim.

Faz parte do jogo. Mas ele tende a ficar mais complexo, prevê D’Atri, num momento em que “a corda está esticada” pelo excesso de capacidade chinês, para o qual inexiste “solução única”. Para o governo brasileiro, o desafio é encontrar um ponto de equilíbrio entre o interesse de fomentar a parceria com Pequim e a promessa de defender a indústria nacional.

Fonte: O Globo

© 2024 Blog do Marcos Dantas. Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo deste site sem prévia autorização.