Split payment e o fim do eterno Sísifo fiscal

Fernando Haddad e Bernard Appy
Atrás da imagem, em foco, o secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy; à frente da imagem, desfocado, o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad

O sistema tributário brasileiro, conhecido por sua complexidade, está prestes a passar por uma mudança significativa com a introdução do mecanismo de split payment (pagamento dividido), previsto no projeto de lei complementar 68/2024, que regulamenta a Reforma Tributária. 

Esse novo sistema, que direciona automaticamente parte dos tributos para os cofres públicos no momento do pagamento de serviços ou mercadorias, promete trazer tanto benefícios quanto desafios para contribuintes e governo.

Assim como o castigo infligido a Sísifo, as empresas empurram a pesada pedra da burocracia fiscal morro acima para vê-la rolar de volta ao final de cada período de apuração, reiniciando o árduo e infindável processo das obrigações tributárias. 

O split payment surge como uma promessa de libertação desse ciclo. Mas será que ele traz consigo a redenção ou apenas mais um elo na corrente da complexidade? 

A automatização dos recolhimentos, embora pareça atraente na superfície, pode esconder armadilhas. Afinal, a simplificação sempre vem com um preço. Quem vai arcar com os custos de adaptação dos sistemas tecnológicos para a adoção do novo sistema? E o que acontece com as empresas menores, que podem não ter os recursos para fazer essas mudanças?

A experiência da Polônia, que adotou o mecanismo em 2018, tem mostrado eficácia na redução da fraude fiscal e na simplificação dos recolhimentos e talvez possa servir como um exemplo a ser considerado.

Mas nem tudo foi êxito. Em estudo publicado em 2017, a Comissão Europeia destacou que, apesar de sua eficácia em reduzir certos tipos de fraude, os benefícios do mecanismo eram superados pelos seus custos e pelo aumento da complexidade do sistema, além dos elevados encargos administrativos e do impacto significativo no fluxo de caixa das empresas. 

Todos esses meandros, no entanto, parecem ter sido desconsiderados na proposta inicial do split payment de que trata o PLC 68/2024 e podem levar a uma pressão financeira significativa tanto para as empresas como para o próprio governo. 

Inicialmente sentido pelas empresas polonesas ao adotarem o mecanismo, o governo local conseguiu ajustar o sistema para equilibrar os benefícios de controle fiscal com as necessidades operacionais dos contribuintes.

Na Polônia, nas operações parceladas, cada prestação é tratada separadamente e o IVA é transferido em cada uma delas, assegurando conformidade contínua com o mecanismo do split payment.

Além disso, a legislação polonesa determina que os bancos que não cumprirem os regulamentos relativos ao mecanismo poderão enfrentar penalidades por não gerir corretamente as contas de IVA ou processar pagamentos de forma imprecisa.

No Brasil, o sistema proposto da forma como está ainda deixa várias dúvidas. Como serão tratadas as possíveis imprecisões na identificação dos débitos? Como serão os recolhimentos em operações parceladas? E o que acontece se as instituições de pagamento não retiverem o IBS/CBS corretamente? 

Essas lacunas ainda existentes na legislação brasileira deixam as empresas navegando em águas desconhecidas, o que aumenta a insegurança jurídica e pode desaguar em novos conflitos entre os contribuintes e o Fisco. 

A recente experiência polonesa destaca a importância de um planejamento cuidadoso e de fornecer orientações detalhadas para garantir uma transição suave. 

Assim como propõe Michael Sandel em Justiça: O Que é Fazer a Coisa Certa, o mecanismo sugerido deve (ou deveria) ser cuidadosamente avaliado sob o prisma da eficiência, liberdade e justiça, buscando um equilíbrio entre os diferentes valores em jogo.

Fato é que, em vez de oferecer um final diferente para o ciclo sisífico, o split payment pode estar na realidade substituindo uma pedra por outra. 

A cautela recomenda senso crítico para separar a natural euforia que acompanha as boas intenções dispostas a simplificar o sistema tributário brasileiro. 

De todo modo, é crucial que o governo forneça orientações mais detalhadas e seguras sobre essas questões antes de implementar essa significativa reforma tributária. Caso contrário, as empresas novamente podem ficar presas em um novo ciclo de esforço constante pela implementação apressada de um sistema mal compreendido. 

Fonte: Poder360

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