Sem cessar-fogo, sem voto: Árabes-americanos ameaçam punir Biden nas eleições por seu apoio a Israel

Protesto em Dearborn, EUA, onde funcionários do governo Biden se reuniram com líderes da comunidade árabe-americana de Michigan em reuniões a portas fechadas
Protesto em Dearborn, EUA, onde funcionários do governo Biden se reuniram com líderes da comunidade árabe-americana de Michigan em reuniões a portas fechadas — Foto: Nick Hagen/The New York Times

O Café e Livraria Kitab mal consegue abrigar a multidão que rumou para lá de uma manifestação no Parque Zussman, também localizado em Hamtramck, uma das cidades com maior população árabe-americana na Grande Detroit. Faz um frio de 3°C dois dias antes de democratas e republicanos votarem nas primárias do Michigan, um dos estados decisivos na disputa pela Presidência dos Estados Unidos este ano. O refúgio oferece melhor acústica para se escutar o que Layla Elabed e Abraham Aiyash têm a dizer. E o recado é direto: o desastre humanitário na Faixa de Gaza pode despejar Joe Biden da Casa Branca.

Em 144 dias de ofensiva israelense, estima-se que cerca de 30 mil palestinos foram mortos. A operação militar foi iniciada após o ataque terrorista do grupo palestino Hamas em 7 de outubro, que tirou a vida de mais de 1.100 israelenses e pessoas de outras nacionalidades, além de deixar cerca de 240 reféns. E há, no Kitab, pessoas que perderam familiares, amigos, parentes de amigos. Para elas, o apoio da Casa Branca ao que classificam como genocídio é uma traição que “ultrapassou o limite do suportável”.

— Ou Biden deixa de vetar o cessar-fogo na Palestina na ONU e anuncia a suspensão do financiamento de armas para Israel, ou não terá nosso voto. Acabou. O recado será dado nas urnas nesta terça-feira — disse Aiash.

Não é ameaça vazia. O deputado estadual de óculos de aro preto grosso, tênis branco, cabelo bem cortado e origem iemenita é o líder da maioria na Assembleia do Michigan, governado por Gretchen Whitmer, estrela em ascensão no partido e uma das coordenadoras nacionais da campanha de reeleição de Biden. Constrangida, a governadora disse ontem, em evento pró-presidente, que “as primárias são desenhadas mesmo para este tipo de discussão”, mas também alertou que “um voto a menos para Biden é automaticamente um a mais para Trump”.

No chão do Kitab estão Elabed, irmã da primeira deputada de origem palestina no Capitólio, Rashida Tlaib, parlamentares, prefeitos e vereadores de cidades vizinhas, entre elas Pontiac e Dearborn. Não menos significativo, o ex-deputado federal Andy Levin, uma das figuras públicas mais representativas da comunidade judia no estado.

A pressão que dirigem hoje ao presidente pode ser dimensionada ao se voltar quatro anos no tempo. A comunidade árabe-americana local, com cidadãos em sua maioria de origem palestina, jordaniana, iraquiana, síria e iemenita, não é a maior do país, ficando atrás das do Illinois e de Nova Jérsei. Mas estes dois estados votam majoritariamente com os democratas, ao contrário do Michigan. Aqui, ela deu quase 150 mil votos, de acordo com as pesquisas de boca de urna, a Biden em 2020. A vantagem final do vice de Barack Obama sobre o então presidente republicano foi de 154 mil votos. Biden não teria conquistado os 15 delegados decisivos para tirar Donald Trump da Casa Branca sem o voto dos moradores da Grande Detroit. Em 2016, o republicano venceu Hillary Clinton por pouco mais de 11 mil votos no estado.

Criado há três semanas e inspirado em uma iniciativa parecida da campanha de Barack Obama em 2008, quando regras internas do partido o forçaram a sair da disputa com Hillary no estado, o Listen to Michigan (“Ouça o Michigan”), coordenado por Elabed, que fala com pausadamente e hipnotiza os interlocutores, orienta os eleitores a votar hoje na opção “sem compromisso”, e não em Biden.

Só se saberá o tamanho do voto de protesto no fim do dia e não há garantias de que se repetirá em novembro, mas a velocidade da militância impressiona. Em pouco menos de 20 dias, multiplicaram de 10 para 450 as sucursais do grupo, bateram na porta de milhares de casas e se tornaram os principais protagonistas locais de uma disputa marcada pela apatia nos dois lados. O GLOBO viu panfletos do grupo espalhados por restaurantes, livrarias, supermercados, escolas e postos de saúde na Grande Detroit.

— Nossa velocidade é a do desespero. É a de quem está usando todas as armas democráticas disponíveis para evitar a morte de mais civis. Apenas Biden tem o poder para determinar o fim da chacina e ele precisa ser pressionado— diz Elabed.

A militância dos árabe-americanos destoa da mobilização modesta de outros grupos centrais na coalizão democrata, como afro-americanos, mulheres (as Fems for Dems, cruciais na reeleição de Whitmer há dois anos, quando o estado aprovou a proteção ao aborto em sua Constituição) e operários. Os republicanos se debatem com o caos interno de duas alas radicais organizando prévias distintas (embora apenas uma reconhecida oficialmente) e o asfixiamento da candidatura Nikki Haley no que parece ser mais um capítulo na confirmação de Trump. O foco no Michigan está, de forma também inédita nas primárias, no outro lado — no início do mês, pesquisa do Center for Public Affairs mostrou que 52% dos democratas desaprovam o modo como Biden lida com a crise em Gaza.

Na segunda-feira, ao visitar uma sorveteria hipster em Nova York, cone na mão, o presidente afirmou acreditar “que um cessar-fogo seja anunciado até a próxima segunda-feira”, por conta do esforço diplomático da Casa Branca. Isso evitaria uma ação militar em Rafah, no sul do enclave, durante o Ramadan, importante para os muçulmanos. O presidente não falou, no entanto, do apoio militar ao governo de Benjamin Netanyahu.

Um dia antes de deflagrar a campanha pelo voto de protesto, líderes do Listen to Michigan se reuniram com enviados da Casa Branca ao estado. Lideranças locais, de modo reservado, criticaram ao GLOBO o fato de Biden, que pouco antes viera ao estado receber o apoio de um dos mais fortes sindicatos de trabalhadores da indústria automotiva, não ter participado do encontro. Foi, contou o líder democrata da Assembléia, uma conversa “tensa”, que terminou com o parlamentar afirmando que “se não pudemos evitar a morte de 30 mil pessoas, é legítimo usar a pressão do voto para evitar a morte de outras 30 mil”. A argumentação dos governistas incluiu, conta, a “ousadia” de sugerir que os manifestantes haviam esquecido de que Trump, quando presente, banira a entrada de pessoas que professavam a fé muçulmana nos EUA.

— Como eu poderia esquecer disso? Três dias antes de Trump assinar sua ordem executiva meu tio morreu em uma ação militar na Palestina. Ele esperava há seis anos sair sua documentação para entrar nos EUA de forma legal. Não venham à nossas comunidades dizer que nós é que estamos comprometendo a democracia ao não votar em Biden, entregando de bandeja a presidência a Trump. O que estamos oferecendo aqui, e pela via democrática do voto, é uma oportunidade para Biden agir como prega: pela ética, com a autoridade moral que só tem quem não financia genocídio — disse Aiash.

A fala do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva na Etiópia, em que comparou as mortes em Gaza com o Holocausto, também foi lembrada pelos democratas defensores do voto “sem compromisso” nas primárias desta terça-feira.

— Nós estamos aqui fazendo a pressão local, mas precisamos da global. E o governo brasileiro e o presidente Lula têm sido importantes desde o início da invasão na denúncia do massacre indiscriminado de civis e da necessidade do cessar-fogo. A fala dele escancarou o isolamento de Biden e de Washington no tabuleiro global— disse Elabed.

Fonte: O Globo

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