Rússia usa ‘Presidência tampão’ de Zelensky como arma de propaganda na guerra

Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, durante visita a tropas na região de Kharkiv
Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, durante visita a tropas na região de Kharkiv — Foto: Serviço de Imprensa Presidencial da Ucrânia / AFP

Na última segunda-feira, em meio a uma ampla ofensiva russa no Nordeste ucraniano, centrada na cidade de Kharkiv, Volodymyr Zelensky vivia um marco de sua Presidência, que em outros tempos mereceria mais destaque: naquele 20 de maio, o mandato conquistado por ele nas urnas em 2019 chegou ao fim.

As leis locais lhe dão argumentos para seguir no poder em tempos de guerra, mas a máquina de propaganda russa, com a ajuda de certos bilionários populares, aproveitou o que seria uma brecha legal para elevar o tom do discurso anti-Kiev, em um momento favorável à Rússia no conflito.

— O chamado presidente da chamada Ucrânia está tentando com todas as suas forças permanecer no poder. Agora ele está violando não apenas os acordos internacionais, mas também as leis do seu próprio país — disse, na segunda-feira, o vice-presidente do Conselho de Segurança da Federação Russa, Dmitry Medvedev, à agência Tass. — Este é o toque mais importante no seu já repugnante retrato.

Viktor Medvechuk, ex-deputado ucraniano amigo de Putin e banido de seu próprio país, acusou Zelensky de descumprir a Constituição ao não deixar o poder no dia 20.

— Zelensky não pode servir como presidente, mas quando é que ele cumpriu a lei? — disse, também à Tass, no fim de abril. — [O Ocidente] apoia Zelensky precisamente porque ele é um homem cínico e sem lei que destruiu o país em nome das suas ambições dolorosas e jogou o povo ucraniano no fogo da guerra.

Dentro do governo russo, a tese da ilegitimidade frequenta os corredores dentro dos muros vermelhos do Kremlin, mas com falas menos ácidas do que as de Medvedev ou Medvechuk. Em entrevista ao jornal Izvestia, no final de março, o chanceler Sergei Lavrov disse esperar que isso “fosse resolvido antes do dia 20 de maio”.

— Talvez nós não precisemos reconhecer nada — afirmou, em tom enigmático.

Em 28 de abril, o onipresente secretário de Imprensa do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que os debates sobre a legitimidade se intensificaram com a proximidade do fim do mandato, e que “de alguma forma ele [Zelensky] terá que se justificar”. O próprio Vladimir Putin, que com frequência chama as autoridades em Kiev de “neonazistas”, entrou na polêmica.

— Quanto à legitimidade, esta questão deve, em primeiro lugar, ser respondida pelo próprio sistema político e jurídico da Ucrânia — afirmou Peskov à imprensa russa durante viagem à China, na semana passada. — Esta avaliação, é claro, deve ser feita antes de tudo pelo Tribunal Constitucional e, em geral, por todo o sistema político da própria Ucrânia.

O mais recente questionamento veio do bilionário sul-africano Elon Musk, que em setembro do ano passado foi chamado de “uma pessoa extraordinária” por Putin. Na terça-feira, Musk, em resposta a uma publicação do jornalista Jack Posobiec, um dos favoritos da extrema direita dos EUA, que falava do fim do mandato de Zelensky, perguntou:

“Mas pensei que estávamos lá para ‘defender a democracia’?”, escreveu Musk no X, o antigo Twitter.

Mas afinal, a continuidade de Zelensky no poder após o fim do mandato estipulado pelas urnas em 2019 é constitucional? Tecnicamente sim, mas a Carta ucraniana tem lacunas que são exploradas politicamente por facções políticas ou inimigos estrangeiros.

Segundo o artigo 103 da Constituição, o presidente “é eleito pelos cidadãos da Ucrânia com base no sufrágio universal, igual e direto, por voto secreto, por um mandato de cinco anos”. Teoricamente, ele deveria entregar o mandato na segunda-feira, mas juristas apontam para um outro artigo, o 108: “o presidente exercerá seus poderes até que um novo presidente eleito assuma o cargo”. Por essa visão, hoje majoritária na Ucrânia, ele só deixará o cargo se houver um novo líder eleito.

A questão é que a Lei Marcial, em vigor desde fevereiro de 2022, impede que sejam realizadas eleições. Se Zelensky resolvesse convocar uma votação neste período, algo que chegou a sugerir em agosto do ano passado, poderia ser acusado de cometer um crime grave.

— Zelensky continua no poder enquanto a Lei Marcial estiver em vigor. Não há crise legal ou política. Ponto final — disse à revista Economist Roman Bessmertny, ex-primeiro-ministro e um dos autores da Carta de 1996.

Em entrevista ao serviço russo da BBC, o ministro da Justiça ucraniano, Denis Malyuska, credita o que chama de “desinformação” à maneira como a Constituição foi redigida nos anos 1990, quando os autores não poderiam imaginar que o país se veria em meio a uma invasão russa.

— Gostaria de perguntar aos criadores [da Constituição] se houve algum tipo de pensamento mais amplo sobre o tema. Isso seria muito interessante para mim. Suspeito que tenha sido falta de conhecimento, desatenção — disse Malyuska. — [As normas para tempos de guerra] foram formuladas de tal forma que qualquer pessoa que queira encontrar algo para reclamar ou construir teorias da conspiração sobre isso vai encontrar.

No começo de maio, Zelensky assinou mais uma prorrogação da Lei Marcial, válida até o dia 11 de agosto, e nos últimos meses tem sinalizado que, embora seja favorável a uma votação quando for possível, “não é o momento certo” para ir às urnas.

— Devemos decidir que agora é a hora da defesa, a hora da batalha da qual depende o destino do Estado e do povo, e não a hora das disputas que só a Rússia espera da Ucrânia. Acredito que agora não é hora de eleições. E se é preciso acabar com esta ou aquela disputa política e continuar a trabalhar em uníssono, então o Estado tem estruturas que podem acabar com isso e dar à sociedade todas as respostas necessárias — afirmou o presidente, em novembro de 2023.

Seis meses depois da fala de Zelensky, a situação nas linhas de frente é bem pior do que ele imaginava. Com estoques de munições ainda baixos, sem tropas suficientes e com entregas de equipamentos do Ocidente a conta-gotas, a Ucrânia perdeu territórios no Leste, e está sob intenso ataque russo no Nordeste, centrado na cidade de Kharkiv, a segunda maior do país. O líder ucraniano afirma que suas linhas de defesa estão conseguindo conter a “primeira onda” ofensiva, mas não sabe até quando isso será sustentável. Putin, por sua vez, afirma que não quer tomar Kharkiv, mas sim criar uma “zona de segurança” perto da fronteira, citando os recorrentes bombardeios contra seu território.

Embora alguns políticos, como o deputado e potencial candidato à Presidência Alexey Arestovich, tenham sugerido uma votação através de um aplicativo, o Diya, a maioria da população não concorda com eleições no momento em que parte do país está sob ocupação parcial, e quase todo o território é alvo de ataques. Outro possível candidato, Valeriy Zaluzhny, ex-chefe das Forças Armadas e hoje embaixador em Londres, evita falar sobre o tema.

— Para os ucranianos, a prioridade é ganhar a guerra e depois realizar uma eleição — disse à BBC Anton Hrushetskyi, chefe do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev. — Por isso, eles não questionam a legitmidade de Zelensky.

Em março, o instituto de pesquisas Razumkov divulgou que 59,5% dos ucranianos são contra uma eleição neste momento, enquanto 22,1% defendem a ideia (os demais entrevistados, 18,4%, dizem não saber). Para 45%, uma votação neste momento iria “desunir” o país, e, para 42% uma transição de poder atrapalharia a guerra contra a Rússia.

Fonte: O Globo

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