Revolução dos Cravos: Conheça personagens esquecidos do levante que derrubou ditadura em Portugal há 50 anos

Mural de rua em Lisboa em homenagem ao sargento Maia, que liderou a Revolução dos Cravos, e às mulheres que atuaram na missão
Mural de rua em Lisboa em homenagem ao sargento Maia, que liderou a Revolução dos Cravos, e às mulheres que atuaram na missão — Foto: ATRICIA DE MELO MOREIRA / AFP

Assim que a música “Grandôla, vila morena”, do cantor português José Afonso, começou a tocar na madrugada de 25 de abril de 1974, 5 mil soldados foram às ruas de Portugal dar um golpe de Estado contra a ditadura (1933-1974). Cada um deles desempenhou um papel, crucial ou secundário, para o sucesso daquela missão histórica, que completa 50 anos nesta quinta-feira. Sem atos de violência ou vingança, o comandante de artilharia Otelo Saraiva de Carvalho liderou mais de 40 ações à frente do Movimento das Forças Armadas (MFA), composto por cerca de 300 capitães. Em poucas horas, o golpe contra o regime autoritário — o mais longo da Europa, iniciado pelo ex-premier António Salazar — se transformou em revolução.

Os portugueses saíram às ruas para impedir que o levante contra o regime, na época sob comando de Marcelo Caetano, fosse revertido. O gesto de uma garçonete chamada Celeste Caeiro, que distribuiu cravos aos soldados porque não tinha cigarros, deu nome ao que estava acontecendo: Revolução dos Cravos. Mas antes da festa que aconteceu depois no país, finalmente livre de 48 anos de repressão e censura, houve vários momentos de tensão em que tudo poderia ter saído dos trilhos. Meio séculos depois, alguns dos protagonistas relembram os episódios daquela fatídica noite.

Durante 40 anos, ninguém soube o nome do homem que se trancou em seu tanque para evitar ter que abrir fogo contra seus companheiros na manhã de quinta-feira, 25 de abril de 1974. Em 2014, após a revelação de sua identidade graças ao jornalismo investigativo de Adelino Gomes e Alfredo Cunha, José Alves da Costa recebeu do Presidente da República a distinção de Grão-Mestre da Ordem da Liberdade.

Em 1974, ele estava à frente de um tanque M47 que saiu às ruas para defender a ditadura. Junto ao rio Tejo, o general de brigada Junqueira dos Reis ordenou que o cabo Costa disparasse contra o capitão Maia e suas tropas, que haviam percorrido os 80 quilômetros entre Santarém e Lisboa à noite para derrubar o regime. Diante da evasiva do cabo, o general sacou a pistola e lhe disse:

— Ou você abre fogo ou eu lhe dou um tiro na cabeça.

José Alves da Costa o acalmou, entrou em seu tanque, fechou a escotilha por dentro e só saiu várias horas depois, quando a revolução já estava nas ruas.

— Se ele disparasse, eu seria o único a morrer. Mas se eu atirasse, dezenas ou centenas de pessoas morreriam. Atirar não era uma opção para mim, só o teria feito se tivesse certeza de que não causaria danos — explicou ele durante uma entrevista em sua casa em Balazar, na região portuguesa do Minho, em dezembro do ano passado.

Manuel Correia da Silva foi um dos 240 membros da coluna de cavalaria comandada por Salgueiro Maia. Foi também um dos soldados que recebeu um cravo de Celeste Caeiro, quando estavam no Rossio, no centro de Lisboa, sem que nenhum dos dois soubesse que estavam batizando aquela quinta-feira histórica. Mas o mais chocante para o sargento Correia da Silva foi ter de guardar Marcelo Caetano, o símbolo da ditadura, após a sua rendição.

O ditador foi cercado durante várias horas no quartel do Largo do Carmo pelas tropas do capitão Maia. Depois de passar o poder ao general António de Spínola, que não pertencia ao Movimento das Forças Armadas (mas isso é outra história), Caetano desce as escadas e entra no carro blindado acompanhado por dois ministros. O sargento senta-se ao seu lado. Durante o trajeto até o quartel da Pontinha, onde a liderança rebelde o aguardava, ninguém falou.

— Em 24 horas, o homem que tinha todo o poder se tornou um prisioneiro. As únicas palavras que ouvi dele foi uma resposta que deu a um soldado: ‘É a vida’ — disse Silva.

Os rebeldes queriam uma evacuação pacífica e estavam protegendo o ditador da ira dos cidadãos, reunidos no Largo do Carmo.

— Demoramos uma eternidade para sair dali em direção ao posto de comando do MFA porque as pessoas queriam fazer justiça com as próprias mãos. O carro blindado, que pesa toneladas, estava balançando como um caniço e ouvimos as pessoas gritando ‘Morte ao fascismo’ e ‘Morte a Marcelo Caetano’.

A Força Aérea se desvinculou do levante contra a ditadura, que foi realizado exclusivamente por unidades do Exército, mas alguns de seus oficiais participaram em caráter pessoal. Foi o caso de José Manuel Costa Neves, engenheiro aeronáutico com a patente de major, que liderou a ocupação do Rádio Clube Português, a estação de rádio a partir da qual todos os comunicados do Movimento das Forças Armadas foram transmitidos a partir das 4h26 do dia 25 de abril de 1974.

Costa Neves foi protagonista de uma famosa história em um dia dado ao surrealismo, quando esqueceu as pistolas Walter que seu grupo deveria portar durante o assalto à emissora. O oficial havia trancado o carro com as armas dentro e pediu ajuda a um policial para forçar a abertura da porta com um arame. Impressionado com as boas maneiras de Costa Neves, o policial lhe disse: “Se todos tivessem a mesma civilidade que o senhor acabou de demonstrar, a vida da polícia seria muito mais fácil”. Horas depois, o educado policial acabaria detido no estúdio número 5, onde os rebeldes estavam prendendo as forças leais ao regime.

— A certa altura, para acalmar a tensão que se gerava entre os policiais detidos no estúdio, o que não era de estranhar dada a exiguidade do espaço onde se encontravam, tentei explicar-lhes o que se passava e dei-lhes água e tabaco que se encontravam no bar da estação — recordou Costa Neves.

Ele passou duas noites sem dormir lá e fez amizade com o radialista Joaquim Furtado, que leu o primeiro comunicado dos rebeldes. O único arrependimento que o acompanha desde aquele dia é não ter pedido desculpas ao policial que o ajudou a arrombar seu próprio carro e que acabou preso horas depois.

Fonte: O Globo

© 2024 Blog do Marcos Dantas. Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo deste site sem prévia autorização.