Reino Unido pede investigação após médicos de Gaza relatarem violência e humilhação de soldados israelenses em hospital

Médicos inspecionam danos em hospital de Khan Younis, na Faixa de Gaza
Médicos inspecionam danos em hospital de Khan Younis, na Faixa de Gaza — Foto: AFP

Detenções, espancamento, humilhações, e uma estrela de Davi desenhada no gesso após uma mão quebrada. Esses são apenas alguns dos relatos feitos por médicos do Complexo Médico Nasser, o maior hospital de Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza, à rede britânica BBC. Os casos teriam ocorrido durante a invasão do Exército de Israel na unidade, em meados de fevereiro, e a violência denunciada levou a Chancelaria britânica a pedir, nesta terça-feira, uma investigação sobre o caso.

— É preciso haver uma investigação completa e minuciosa e uma responsabilização pelo que foi relatado hoje [terça-feira] pela BBC. O Ministério das Relações Exteriores está pressionando por total transparência e responsabilização nesse sentido — afirmou o ministro das Relações Exteriores do Reino Unido, Andrew Mitchell, durante questionamentos na Câmara dos Comuns.

Um vídeo compartilhado com a rede britânica, gravado no dia 16 de fevereiro, mostra uma fileira de homens de cueca, ajoelhados e com as mãos atrás da cabeça. Eles ficaram naquela posição “por cerca de duas horas”, segundo o diretor geral do complexo, Atef al-Hout. Em uma publicação no X (antigo Twitter) à época, Israel afirmou ter detido quase cem pessoas “suspeitas de atividade terrorista”. À BBC o governo afirmou que foram presos “cerca de 200 terroristas e suspeitos de atividades terroristas, incluindo alguns que se passaram por equipes médicas”.

A rede britânica afirma que recebeu o nome de 49 profissionais de saúde que teriam sido detidos pelos soldados. Eles teriam sido levados para um prédio hospitalar — que os relatos apontaram como a maternidade do complexo, chamada Mubarak, onde ocorriam interrogatórios —, espancados e depois transportados para um centro de detenção, ainda seminus.

Entre os detidos e posteriormente libertados estava Ahmed Abu Sabha, de 26 anos, recém-formado em medicina. O jovem trabalhava como médico voluntário na unidade de saúde e conversou duas vezes com a BBC, que aponta consistência em seu relato e afirma que partes importantes foram confirmadas de maneira independente. Além dele, outros dois médicos detidos também conversaram com a rede, mas sob condição de anonimato.

Abu Sabha contou que ficou detido durante uma semana e teria sido levado ao Mubarak. Ali, ele pensou que “seria executado”. O jovem e os outros dois médicos também afirmaram à BBC que foram amontoados em um veículo, vendados e espancados enquanto se deslocavam. As agressões, eles disseram, aconteciam com paus, mangueiras, coronhas de armas e socos.

— Nos tiraram de Gaza. Durante todo o caminho, apanhamos, fomos xingados e humilhados. E jogaram água fria em nós — relembrou um deles, sob condição de anonimato.

O jovem médico contou à BBC que punições contra os detentos eram rotineiras, muitas vezes por pequenas infrações e relembrou um caso: uma hora, a venda que usava escorregou e, por estar algemado, não conseguiu ajeitá-la.

— Eles me levaram para ser castigado. Fiquei preso com as mãos para o alto, acima da minha cabeça, e o rosto para baixo por três horas. Então, ele [um soldado] me pediu para ir até ele. Quando fiz isso, ele bateu na minha mão até ser quebrada — disse, lembrando que mais tarde teria sido levado a um banheiro, onde apanhou e cachorros com focinheiras foram soltos sobre ele.

No dia seguinte, um médico israelense pôs gesso em um seu braço, onde soldados israelenses, segundo seu relato, teriam desenhado uma estrela de Davi. Abu Sahbha apareceu em um vídeo da rede britânica com o braço quebrado, e a BBC confirmou que o médico fez um raio-x.

Os outros dois médicos contaram que em algum momento receberam tratamento, mas nenhum medicamento. Um deles afirmou que, em vez de um tratamento para um ferimento, um soldado chegou a desferir um golpe sobre o local.

As Forças Armadas de Israel (IDF), quando questionadas pela BBC, não responderam diretamente às perguntas sobre os relatos, nem negaram as alegações específicas sobre maus-tratos. Elas negaram, porém, que os médicos tenham sido prejudicados durante a operação.

“Qualquer abuso de detentos é contrário às ordens das IDF e, portanto, é estritamente proibido”, disseram em nota.

Nenhum dos três médicos disse ter sido informado de quaisquer acusações específicas. Abu Sabah disse que, durante os dias que passou sob detenção, nunca foi interrogado, enquanto os dois que falaram de forma anônima afirmaram que os interrogatórios se concentravam em saber se eles tinham visto reféns ou combatentes do Hamas no local.

A principal alegação do Exército de Israel para invadir o hospital era de que o grupo teria se escondido entre civis feridos. Na época, o porta-voz das forças armadas, Daniel Hagari, disse ter “informações confiáveis de uma série de fontes, inclusive de reféns libertados”, de que o Hamas já havia mantido sequestrados no hospital, e que os corpos poderiam estar no local.

Em uma publicação no X, no dia 18, os soldados afirmaram terem encontrado dentro do hospital “medicamentos destinados aos reféns, grandes quantidades de armas e um veículo pertencente ao kibbutz Nir Oz”.

Um alto funcionário das Forças Armadas de Israel, por sua vez, alegou à rede britânica que nenhuma prisão foi feita entre a equipe médica no hospital “a não ser que soubéssemos que era possível obter esta ou aquela informação de inteligência”. Ele afirmou que tinha “motivos razoáveis” para supor que eles, os detidos, tinham informações, “por isso os levaram para interrogatório, mas não além disso.”

— Não havia algemas, nem prisão avançada. Os levamos para fins de interrogatório e tentativa de obter informações sobre os reféns ou os comandantes do Hamas que estavam no hospital… [Fizemos] um interrogatório muito simples e apenas isso.

Segundo a BBC, em imagens compartilhadas pelas próprias forças armadas, é possível ver pacientes deitados em camas no pátio do hospital, com as mãos amarradas com uma espécie de lacre e os braços suspensos acima da cabeça. Os soldados, também citados pela rede, afirmaram que “as mãos dos pacientes que não eram suspeitos de envolvimento em terrorismo não estavam atadas”.

Familiares de outros cinco médicos do hospital Nasser afirmaram à BBC que seus parentes estão desparecidos. Além disso, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) confirmou à rede britânica que recebeu dezenas de telefonemas de pessoas que dizem ser familiares dos detidos, incluindo médicos, e estão desaparecidos.

Alguns funcionários teriam sido autorizados a permanecer no hospital, embora aleguem que a operação deixou o centro médico inoperante. Quem ficou descreveu à BBC ordens para transportar pacientes em estado grave entre edifícios, alguns profissionais afastados de suas funções para ser interrogados e alguns destinados para tratar pacientes que não estavam treinados.

Os médicos afirmam à BBC que pelo menos 13 pacientes morreram dias após o início da invasão, a maior parte devido à condição precária no hospital, como falta de energia, água e suprimentos básicos. Quando questionado pela rede britânica, o Exército de Israel afirmou que “forneceram ao local centenas de rações alimentares e um gerador alternativo que lhe permitiu continuar funcionando e tratando os pacientes”.

Na época, Israel afirmou que a operação era “precisa e limitada”. Poucos dias após o início da invasão, no dia 18 de fevereiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que o Nasser não era “mais funcional”. Os profissionais de saúde também alegam que os soldados israelenses não lhes deram autorização para enterrar ou mesmo retirar os corpos das vítimas durante a operação:

— O cheiro encheu todo o departamento. Os pacientes gritavam ‘por favor, tire-os daqui’. Eu dizia a eles: ‘não está em minhas mãos’ — contou Hatim Rabaa, por telefone, no último dia 22.

Rabaa, que foi um dos médicos destinados a permanecer com os pacientes, contou que também foi despido, ficando apenas de cueca, e obrigado a se ajoelhar. Após ser levado de volta, ele disse que não sabe o que aconteceu com os colegas que permaneceram no pátio.

Após os relatos de violência e humilhação divulgados pela rede britânica, o ministro Andrew Mitchell disse que o país estava pressionando por uma “explicação e investigação completas”. Segundo a BBC, o secretário da pasta, David Cameron, também pediu “respostas israelenses”. À Câmara dos Lordes, Cameron disse que a reportagem da rede britânica era “muito perturbadora” e que era preciso descobrir “exatamente o que aconteceu”.

Também nesta terça-feira, o chefe da diplomacia europeia denunciou o uso da fome “como arma de guerra” em Gaza. Em um discurso no Conselho de Segurança da ONU, Josep Borrell afirmou que a crise humanitária “não é um desastre natural, não é uma inundação nem um terremoto, [mas] é causada pela fome”.

— Quando estudamos formas alternativas de entregar ajuda, por via marítima ou aérea, temos que lembrar que temos que fazê-las porque a rota terrestre habitual está fechada. Fechada artificialmente — disse Borrell, em referência aos lançamentos aéreos e às medidas anunciadas pela União Europeia e EUA, na semana passada. — Pessoas famintas estão sendo usadas como arma de guerra. (Com AFP)

Fonte: O Globo

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