Quênia condiciona envio de missão policial ao Haiti à formação de novo governo após renúncia de premier

Veículos carbonizados permanecem estacionados enquanto a violência das gangues aumenta em Porto Príncipe, Haiti.
Veículos carbonizados permanecem estacionados enquanto a violência das gangues aumenta em Porto Príncipe, Haiti. — Foto: Clarens SIFFROY / AFP

Autoridades do Quênia anunciaram nesta terça-feira que o destacamento de mil policiais ao Haiti para ajudar a coibir a onda de violência desatada por gangues, que controlam 80% do território, está suspensa até que um novo governo seja formado no país caribenho. Nairóbi havia aceitado enviar uma força de segurança ao Haiti como parte de uma missão internacional aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU em outubro, mas o acordo foi alcançado com o primeiro-ministro Ariel Henry, que na noite de segunda-feira anunciou que renunciará assim que for estabelecido um Conselho Presidencial transitório que abra caminho para uma nova eleição.

Korir Sing’oei, principal secretário das Relações Exteriores do país africano, disse à AFP que houve uma “mudança fundamental nas circunstâncias como consequência da ruptura total da lei e da ordem e da subsequente renúncia do primeiro-ministro do Haiti”. Ele acrescentou: “Sem uma administração política no Haiti, não há ancoragem na qual se possa assentar um destacamento policial, portanto o governo aguardará até que uma nova autoridade constitucional seja instalada no Haiti antes de tomar novas decisões a respeito.”

Os EUA reagiram ao anúncio afirmando que não veem necessidade em adiar a missão e que um acordo de transição permitirá o estabelecimento de um novo governo, como quer o Quênia.

— É claro que ficaria preocupado com qualquer atraso, mas não achamos que um adiamento seja necessário — disse à imprensa o porta-voz do Departamento de Estado, Matthew Miller.

Henry, que se encontra em Porto Rico, confirmou sua decisão de renunciar em uma conversa telefônica com o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, que participou na segunda de uma reunião em caráter de urgência da Comunidade do Caribe (Caricom) em Kingston, capital da Jamaica, para abordar a crise no Haiti.

— O governo que eu lidero se retirará imediatamente depois da instalação do conselho — disse Henry em um discurso gravado na língua “créole” haitiana e postado nas redes sociais, em que mencionou o caos que tomou o Haiti: — Nos magoa e revolta ver todas essas pessoas morrendo. O governo que lidero não pode continuar insensível a essa situação.

Após a reunião de segunda-feira, líderes das 15 nações do Caribe, que lideram a pressão para a criação do conselho, disseram que ainda não foi finalizado nenhum plano nesse sentido — o que deixa em aberto se Henry realmente deixará o cargo. Mohamed Irfaan Ali, presidente da Guiana e da Caricom, anunciou que “tomamos nota da renúncia do primeiro-ministro Ariel Henry”, mas que “ainda há um logo caminho a percorrer”.

O Haiti mergulhou num estado de extrema instabilidade desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021, que levou à violência generalizada de gangues. Henry, que tomou posse como primeiro-ministro apenas duas semanas após o assassinato, deveria ter deixado o governo em fevereiro, mas permaneceu no cargo após um acordo com a oposição. A crise institucional, no entanto, vem de antes do magnicídio: desde 2016, o país não celebra eleições para escolher um presidente nem quaisquer outras autoridades democraticamente.

O objetivo é que o conselho exerça as autoridades presidenciais durante a transição, operando por maioria de votos. O órgão será composto por sete membros que representarão os maiores partidos políticos do país, o setor privado e o Acordo de Montana, uma coalizão que apresentou a proposta de um governo interino após o assassinato de Moïse. O conselho também terá dois observadores sem direito a voto: um para a sociedade civil e outro para a comunidade religiosa.

Ficarão excluídos dele qualquer pessoa que seja acusada ou tenha sido condenada em qualquer jurisdição, qualquer pessoa sob sanção da ONU ou que pretenda concorrer nas próximas eleições. Também não poderão participar quaisquer pessoas que se oponham à Resolução 2.699 do Conselho de Segurança da ONU, de 2023, que aprovou o envio de forças de vários países para ajudar a polícia haitiana.

Blinken, o chefe da diplomacia americana, anunciou que os Estados Unidos fornecerão US$ 100 milhões (R$ 498 milhões) adicionais para a futura Missão Multinacional de Apoio à Segurança, além de US$ 33 milhões (R$ 165 milhões) imediatos em ajuda humanitária, elevando para US$ 333 milhões (R$ 1,66 bilhão) o total de promessas dos EUA para o Haiti durante a crise, que já dura anos.

— Podemos ajudar a restaurar uma base de segurança — disse Blinken em Kingston. — Só o povo haitiano pode, e só o povo haitiano deve determinar o seu próprio futuro, e mais ninguém.

Um funcionário do governo americano que viajava com o secretário de Estado afirmou que Henry concordou em renunciar na sexta-feira, mas aguardou a conferência de Kingston para finalizar os detalhes da transição. Ao comentar possíveis represálias contra o premier demissionário e seus aliados, a fonte destacou que Henry é bem-vindo em solo americano caso se sinta inseguro no Haiti.

O presidente americano, Joe Biden, descartou a possibilidade de enviar tropas ao Haiti, país que os EUA ocuparam durante quase duas décadas no século passado e que foi cenário de algumas intervenções desde então.

No início de março, Henry deixou o Haiti e foi ao Quênia finalizar o acordo de envio da força multinacional, liderada pela nação da África Oriental, que deslocasse mil agentes para enfrentar as gangues. Na ocasião, o presidente do Quênia, William Ruto, disse que seu país tinha o “dever histórico” de ajudar porque “a paz no Haiti é boa para o mundo como um todo”. Após a viagem, Henry não conseguiu retornar a Porto Príncipe devido à insegurança no aeroporto, cercado e atacado pelas gangues que queriam impedir sua volta, e seguiu para Porto Rico depois que a vizinha República Dominicana negou autorização para a aterrissagem de seu avião.

Nesta segunda-feira, o ministro do Interior do Quênia, Kithure Kindiki, anunciou que a missão estava na “fase de pré-desdobramento” e que todos os outros programas e medidas de fiscalização relacionados a ela já estavam em vigor. Até agora, porém, não existe um cronograma claro para quando a força multinacional será destacada.

O caos atual atingiu uma escala de violência não vista há décadas, com ataques de gangues a locais estratégicos em Porto Príncipe, como a sede da Presidência, delegacias, o aeroporto e duas prisões, possibilitando a fuga de milhares de criminosos. Os haitianos enfrentam uma catástrofe humanitária, com acesso restrito a alimentos, água e cuidados de saúde.

No fim de semana, Washington retirou funcionários não essenciais da Embaixada dos EUA em Porto Príncipe e reforçou a segurança no local, de acordo com um comunicado do Comando Sul do Departamento de Defesa. Nesta segunda-feira, a União Europeia também anunciou a retirada de seus funcionários.

Durante a ausência de Henry, as autoridades locais tentaram conter a violência com medidas pouco efetivas até o momento: estado de emergência de um mês e toque de recolher noturno, prorrogado até quinta-feira. Na capital, as repartições públicas e as escolas estão fechadas há dias, e o aeroporto está paralisado. Os hospitais tampouco podem funcionar normalmente no país mais pobre das Américas.

Em meio ao caos instaurado na capital, as forças de segurança haitianas conseguiram retomar o controle do porto após confrontos armados com as gangues durante o fim de semana, informou à AFP o diretor da Autoridade Portuária Nacional, Jocelin Villier. Navios conseguiram descarregar contêineres, mas ainda é um desafio transportar os produtos e alimentos para outras localidades, uma vez que as estradas principais não são suficientemente seguras.

Segundo a Organização Internacional das Migrações (OIM), 362 mil pessoas, mais da metade delas crianças, estão deslocadas no Haiti, um número que aumentou 15% desde o começo do ano.

“Hoje não devemos contar com as autoridades que fracassaram e que não vivem no Haiti”, afirmou o sindicato policial SPNH-17 em comunicado publicado na segunda-feira. “Devemos nos mobilizar para defender nosso país e impedir que destruam o pouco que nos resta”, acrescentou. (Com New York Times e AFP)

Fonte: O Globo

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