Quando Lucélia Santos ofuscou Reagan e Elizabeth Taylor na China

Lucélia Santos, o diplomata Paulo Antônio Pereira Pinto, e duas de suas assistentes durante a visita da atriz à China em 1985.
Lucélia Santos, o diplomata Paulo Antônio Pereira Pinto, e duas de suas assistentes durante a visita da atriz à China em 1985. — Foto: Arquivo pessoal

Hoje cedo este espaço a Paulo Antônio Pereira Pinto, embaixador aposentado, que relembra detalhes da marcante visita da atriz Lucélia Santos à China, em 1985, embalada pelo estrondoso sucesso no país da novela Escrava Isaura. Pereira Pinto serviu de 1982 a 1985 na embaixada do Brasil em Pequim. Além de seu período na China, acumulou durante a carreira grande vivência na Ásia, com postos que incluíram Malásia, Cingapura, Filipinas, Taiwan e Índia. Seu sexto livro, “O tecer de relações internacionais contemporâneas”, será lançado em maio pela editora AGE.

Uma nota pessoal curiosa, antes do texto do embaixador: por coincidência, 1985 foi o ano da minha primeira visita à China. Na época, fui testemunha do furacão “Isola”, como a personagem era chamada pelos chineses toda vez que avistavam um brasileiro. Até hoje a novela é lembrada por muitos no país, como uma memória passada de pai para filho.

(Inicia-se aqui o texto do embaixador)

“Isola, Isola laila” — volte Isaura, cantavam chineses na despedida a Lucélia Santos — consagrada pela novela da TV Globo “Escrava Isaura”. A letra R é de difícil pronúncia no idioma chinês, daí a substituição pelo L. Era 1985, no início de abertura da República Popular da China ao exterior. Na dimensão cultural, a visita da atriz brasileira foi verdadeiro ponto de inflexão no intercâmbio entre os dois países, devido ao enorme sucesso do referido seriado entre os programas estrangeiros aceitos na televisão do país.

Considerando que, em agosto de 2024, se comemoram 50 anos do estabelecimento de relações diplomáticas entre a República Popular da China e o Brasil, e quase 40 anos da visita de Lucélia, pensei ser oportuno lembrar fatos de interesse, os quais não encontro em registros mais atuais. Lembro, a propósito, que quando cheguei a Pequim, no início da década de 1980, não era possível deixar de sentir uma certa tristeza, pelo fato de que havia sido encerrada, na China, uma era de convicção poética maoísta. A partir de 1949, acreditara-se que, em benefício do interesse comum da sociedade, centenas de milhões de pessoas poderiam ser levadas ao patamar mais elevado do que o egoísmo individual.

A experiência chinesa de busca de uma sociedade igualitária encantara a muitos. Os países do Terceiro Mundo admiravam sua combatividade e autossuficiência. Os economistas ocidentais registravam o pleno emprego atingido no campo e invejavam sua força de trabalho disciplinada na indústria.

O exercício de observação diário e o aprendizado da realidade do país, no entanto, indicavam que não se vivera na China, nas três décadas anteriores, tantos motivos de encantamento. O lento progresso obtido na economia demonstrara não ser tão fácil desenvolver-se com os próprios recursos, sem a infusão de investimento, tecnologia ou ajuda externa.

Não se quer negar, no entanto, as grandes conquistas do período maoísta, nem os feitos do povo chinês. Um país que na primeira metade do século XX fora devastado por guerras internas, encontrava-se unificado no início da década de 1980, apesar das crises de liderança resultantes da Revolução Cultural. Como era possível verificar, a China alimentava e vestia seu povo. Um esforço descomunal fora feito para construir represas, diques e sistemas de irrigação, e para promover a autossuficiência alimentar. Mas seria isso suficiente? Tais conquistas teriam que ser vistas em perspectiva.

Mao Tsé-tung tornara a “necessidade” em “virtude”, como base de sustentação para política de autossuficiência. Em grande parte, tratava- se de reação ao fato de os soviéticos terem cessado todo e qualquer auxílio, a partir de 1960, levando consigo inclusive as matrizes de fábricas cuja instalação já havia sido iniciada. No início de 1985, quando se deu a visita de Lucélia Santos, portanto, era evidente que os chineses careciam de um “imaginário” que trouxesse um pouco de alegria à população.

Na ausência do embaixador, eu exercia as funções de encarregado de negócios da embaixada em Pequim — com o pomposo título em chinês de “Taipan” [expressão que significa “poderoso estrangeiro”]. Cabia a mim, portanto, colaborar na elaboração do programa da atriz brasileira durante o período de sua permanência na China. O evento inicial foi a organização de conferência de imprensa na sede de nossa representação diplomática. Cabe ressaltar que, naquela ocasião, havia mais jornalistas chineses presentes do que os que compareceram, duas semanas antes, à embaixada dos EUA por ocasião da visita do Presidente Ronald Reagan.

Ficou evidente naquele momento, portanto, que a população chinesa não clamava por visitantes estrangeiros – já que o então chefe de governo do país mais importante do mundo lá estivera oficialmente. Entre as curiosidades quando da ida de Lucélia à Grande Muralha foi a multidão de fãs que quase desabavam da imensa construção, com enorme destaque na imprensa, enquanto, quase coincidindo com a mesma data, lá havia estado a atriz norte-americana Elizabeth Taylor, que só mereceu uma modesta foto em jornal.

Lembro que, quando de nossa visita à Cidade Proibida, uma importante autoridade da Polônia também estava no lugar histórico. Devido a idêntico sucesso da referida novela também naquele país, o personagem queria autógrafo e conversar com Lucélia. Daí, desenrolou-se curioso intercâmbio, durante o qual o outro visitante se expressava em polonês, sua intérprete traduzia para o chinês e nossa intérprete versava o que ele dizia para o português — e vice-versa.

O principal objetivo da ida de Lucélia à China era receber o troféu “Águia de Ouro”, concedido a um artista estrangeiro, na cidade de Hangzhou — conhecida por seu lindo lago e prato típico Frango do Mendigo, cercado de uma longa história para contar. Fomos de trem, acompanhados por intérprete da embaixada, com passagens por Wuxi antiga capital chinesa, Suzhou, famosa por seus jardins e rios, que muito me lembra minha terra natal, Recife, e Xangai, maior centro industrial do país, até chegarmos ao local da premiação.

Durante todo o percurso fomos seguidos por milhares de fãs. Muito gentis, sempre que pediam autógrafos a Lucélia os chineses também o faziam para mim. No início, explicava que eu nada tinha a ver com a visita, pois a acompanhava apenas. Após a décima desculpa, cansei e passei também a assinar centenas de autógrafos. Ademais, recebia os mesmos simples presentes que davam a ela. Por exemplo, na cidade da premiação um calígrafo famoso escreveu em caracteres chineses um poema para ela e outro para mim. Até hoje guardo o meu, em moldura de quadro.

É difícil explicar o porquê do entusiasmo da população chinesa, ainda emergindo de sua “Revolução Cultural”, por uma trama desenvolvida em país tão distante e diferente. Que “soft power” foi esse, que tocou tanto no imaginário de uma civilização das mais antigas? Sem dúvida, a simpatia, o carisma e o discurso de Lucélia — que já defendia causas ambientais — desempenharam papel de relevância nesse processo. De regresso a Pequim, após cerca de duas semanas percorrendo o interior da China, a hospedamos em casa, para que ficasse mais distante do assédio popular, que nunca cessou. Assim mesmo, apesar de, então, diplomatas estrangeiros residirem em condomínios segregados, era quase impossível ela sair sem ser cercada por fãs gritando “Isola”.

Sucessivas viagens oficiais de presidentes brasileiros, após o sucesso obtido no intercâmbio cultural em 1985, contaram com a participação de Lucélia na comitiva. Acredito ser oportuna a inclusão da visita de “Isola a Pequim” em discussões que, quase 40 anos depois, buscam situar o fenômeno da repercussão da presença da atriz brasileira na China em teses atuais, de como “promover o aprendizado mútuo entre culturas, construir solidariedade e consenso, e unir o diálogo para enfrentar desafíos comuns”. Isso tudo, sem dúvida, é importante para a formulação de cenários atuais.

Tratou-se, não posso admitir o contrário, de evento único e quase mágico, que inseriu o “soft power” brasileiro de forma definitiva no imaginário daquele vasto país de civilização milenar, no momento em que, no passado recente, se esforçava no processo de abertura para o exterior.

“Ganbei Isola”, como diz o brinde chinês — felicidades Lucélia!

Fonte: O Globo

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