Proposta de Tarcísio para PM registrar pequenos crimes gera reação: ‘Escantear a Polícia Civil não é o caminho’

Governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas
Governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas — Foto: Marcelo S. Camargo/Governo do Estado de SP

A intenção do governo de São Paulo de ampliar as atribuições da Polícia Militar (PM), permitindo que seus agentes registrem crimes de menor potencial ofensivo, inaugurou um novo capítulo da crise entre a Polícia Civil e a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos). Integrantes da Polícia Civil, que é responsável hoje pela condução desses crimes, acusam o governo de esvaziar a corporação e fomentar “disputas e crises institucionais”.

A medida, que segundo a Secretaria de Segurança Pública ainda está em análise, autoriza a Polícia Militar a elaborar o chamado “termo circunstanciado”, que é um registro destinado a ocorrências de baixa gravidade, até então atribuição exclusiva da Polícia Civil. Esse termo se aplica a crimes de menor potencial ofensivo, como furtos de pequeno valor e posse de drogas para uso pessoal, sendo remetido diretamente ao juiz do juizado especial. É diferente do Boletim de Ocorrência, que, embora também seja um registro, aborda delitos mais graves e é encaminhado a um delegado titular, que decide sobre a instauração ou não de um inquérito policial.

Uma ordem preparatória elaborada pela PM, e a qual O GLOBO teve acesso, traz diretrizes de como essa medida funcionará na prática. Nela, consta que os policiais militares ficarão responsáveis por cumprir as diligências requisitadas pelo Ministério Público e Poder Judiciário, zelar pelo material apreendido em serviço e, se necessário, encaminhar objetos apreendidos para perícia e fazer a remessa dos resultados aos Juizados Especiais.

Jacqueline Valadares, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp), diz que a proposta do governo enfraquece a Polícia Civil e sobrecarrega a Polícia Militar.

— Da mesma maneira que faltam, hoje, 17 mil policiais civis trabalhando nos quadros da instituição, há déficit preocupante na PM. Não estão sobrando policiais militares no estado para fazer o trabalho da Polícia Civil. Ninguém está com o serviço adiantado— diz a delegada.

Jacqueline defende que o governo supra o déficit nas duas pontas e aposte num trabalho coeso, em conjunto, mas com cada um com a sua atribuição. A presidente do sindicato lembra ainda de outro episódio de desgaste com o governo envolvendo o reajuste das forças policiais.

— Escantear a Polícia Civil não é o caminho. Recentemente, já não tivemos bons resultados, quando o estado acabou concedendo reajuste maior para a Polícia Militar em detrimento da Polícia Civil. Isso não está correto. Cabe à Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado de São Paulo apostar na união entre as duas instituições e não fomentar disputas e crises institucionais — sustenta ela.

Desde que Tarcísio assumiu, a SSP-SP mantém uma relação de desgaste com a Polícia Civil. Recentemente, o sindicato divulgou uma nota criticando a exclusão da Polícia Civil em operações como a Fim da Linha, que mira empresas de ônibus acusadas de lavar dinheiro para o PCC por meio do transporte público na capital paulista. Também causou incômodo a declaração de Derrite de que a PM vai assumir, com o MP, o protagonismo do combate ao crime organizado.

Em nota, a PM disse que a medida ainda está em estudo e tem como objetivo dar mais celeridade ao atendimento ao cidadão, otimizar recursos e garantir condições à Polícia Civil para o fortalecimento das investigações de crimes de maior potencial ofensivo, sem prejudicar o policiamento preventivo e ostensivo realizado nas ruas do Estado. A corporação acrescentou que o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que o termo circunstanciado não é atribuição exclusiva da polícia judiciária e que a pedida é autorizada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) e já é adotada em 17 estados brasileiros.

Para especialistas ouvidos pelo GLOBO, a proposta vai sobrecarregar o trabalho dos PMs de São Paulo, que já sofrem com demanda alta na rotina, além de ampliar um desgasta com a Polícia Civil:

— A Polícia Militar já está assoberbada de trabalho, os policiais que atendem o 190 estão sobrecarregados e não conseguem dar conta da demanda. Com essa medida, haverá mais uma responsabilidade para esses policiais, prejudicando a atividade principal da PM, que é o patrulhamento ostensivo. Uma coisa é implementar o termo em estados com populações menores, onde há menos escassez de policiais e as guardas municipais dão conta da segurança pública. Não é o caso de São Paulo — afirma Rafael Alcadipani, professor da FGV e integrante do Fórum de Segurança Pública.

O especialista diz que, se implementada, a medida inevitavelmente gerará tensão com a Polícia Civil. Ele também levanta questionamentos sobre a intenção do governo em conceder mais poder a uma instituição que tem sido alvo de críticas por sua atuação na Operação Verão, a qual resultou em quase 60 mortes na Baixada Santista.

— Desde o início, como mostrado no caso do aumento de salário diferenciado para a PM, o governo Tarcísio tem menosprezado a importância da Polícia Civil — diz Alcadipani, se referindo ao reajuste salarial das polícias Civil e Militar que seguiu percentuais diferentes e foi aprovado pela Alesp no ano passado.

Base de Tarcísio na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), o deputado estadual Delegado Olim (PP) ressalta que a medida já foi implementada no estado, porém a própria Secretaria de Segurança Pública (SSP) voltou atrás por problemas nos procedimentos adotados pela PM nos termos.

— O Supremo autorizou a elaboração do termo pela PM. Não vejo problemas contanto que haja viaturas nas ruas para o patrulhamento e que os termos sejam redigidos de maneira profissional, evitando que a Polícia Civil precise refazê-los como já ocorreu anteriormente — declara Olim.

O advogado criminalista Welington Arruda pondera que a lavratura do termo circunstanciado pela PM busca acelerar o processo de registro de infrações penais de menor potencial ofensivo, o que, em tese, reduz o tempo de espera para o cidadão e libera recursos judiciais para casos mais complexos.

— Com a PM podendo registrar esses termos, há uma simplificação no processo que evita o encaminhamento de todas as ocorrências menores para as delegacias, desafogando o sistema de polícia judiciária. A medida pode resultar em economia processual e financeira ao reduzir a necessidade de envolvimento de múltiplos órgãos do sistema de justiça criminal para infrações menores — explica ele.

Arruda destaca, entretanto, que, considerando o papel da PM como executora da lei, surgem preocupações sobre sua imparcialidade ao registrar termos circunstanciados, especialmente em casos que envolvam a própria atuação policial.

— Hoje, quando um PM se depara com um crime, ele encaminha para o delegado, que decidirá se é de menor potencial ofensivo ou não. Com a nova medida, o próprio PM, que atendeu à ocorrência, será encarregado de fazer essa análise. Isso levanta questões significativas, sobre a questão da imparcialidade de quem olha o caso com a distância necessária — destaca o advogado, que também levanta preocupações em relação à sobrecarga dos policiais.

Para o especialista em direito criminal, a demanda por treinamento contínuo e especializado para lidar com as nuances legais e técnicas dos termos circunstanciados pode representar um desafio logístico e financeiro à medida. Arruda ressalta que a implementação também requer ajustes significativos na infraestrutura e logística, incluindo a criação de espaços dedicados à apreensão e aquisição de equipamentos específicos para armazenar e processar os termos circunstanciados. Além disso, destaca a necessidade de viaturas e policiais disponíveis para garantir a cadeia de custódia e o encaminhamento adequado de materiais ao Instituto de Criminalística.

— Tudo indica que a Polícia Militar ganhará mais influência no espaço que atualmente, e conforme previsto pela Constituição Federal em seu artigo 144, é ocupado pela polícia judiciária. Com isso, a possibilidade de unificação das instituições, que já não era possível antes, se torna ainda mais distante. Isso também aumenta a animosidade entre as instituições, pois é sabido que a medida enfraquece os Delegados de Polícia, que dificilmente receberão essa mudança com aceitação.

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública informou que “promove, desde o início da gestão, a integração das polícias Civil e Militar e medidas que possam melhorar as atividades desempenhadas por ambas as instituições, sempre visando aperfeiçoar o serviço oferecido à população e melhorar as condições de trabalho dos agentes. Além disso, a atual gestão reconhece e valoriza as suas polícias de forma igualitária. Prova disso, foi o reajuste salarial médio de 20,2%, acima da inflação de 4,65% no acumulado segundo IPCA, considerado um feito inédito para um primeiro ano de gestão entre as administrações paulistas mais recentes.”

Fonte: O Globo

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