Presidente do Quênia descarta projeto de aumento de impostos após violência em protestos: ‘O povo falou’

O presidente do Quênia, William Ruto, durante entrevista coletiva
O presidente do Quênia, William Ruto, durante entrevista coletiva — Foto: SIMON MAINA / AFP

O presidente do Quênia, William Ruto, declarou, nesta quarta-feira, que o controverso projeto de lei que prevê o aumento dos impostos “será suspenso” e provocou uma onda de protestos pelo país na última semana. O recuo ocorre no dia seguinte à escalada dos protestos, que deixaram cerca de 20 pessoas mortas e levaram à invasão e saque do Parlamento por manifestantes.

— Desisto e, por isso, não vou assinar a lei das finanças de 2024, que será portanto retirada — afirmou Ruto durante um discurso televisionado nesta quarta-feira, dizendo que irá dialogar com os jovens, que lideram os protestos. — O povo falou.

Os protestos, que começaram a eclodir pelo país há oito dias, até então de maneira pacífica, explodiram na terça-feira após a aprovação do projeto pelos legisladores, um acontecimento sem precedentes desde a independência desta antiga colônia britânica, em 1963. Em Nairóbi, a polícia disparou tiros com munição real contra a multidão, que invadiu prédios governamentais e ateou fogo em veículos. Um comunicado divulgado ainda na terça por organizações cívicas e da Anistia Internacional afirmou que pelo menos cinco pessoas morreram e dezenas ficaram feridas.

Em seu discurso, o presidente prestou condolência aos familiares “que perderam seus entes queridos desta forma tão infeliz”, mas seus números contrastam com os novos dados divulgados por algumas organizações nesta quarta-feira: enquanto afirmou que seis pessoas morreram, a Comissão Nacional de Direitos Humanos e o Grupo de Trabalho para a Reforma da Polícia do Quênia (PRWG, na sigla em inglês), citado pela CNN, registraram 22 (sendo 19 na capital) e 23 mortos, respectivamente.

— É necessário que nós, como nação, partamos daqui e sigamos para o futuro — afirmou o líder queniano.

O presidente também advertiu que o descarte da medida significaria um déficit significativo no financiamento de programas de desenvolvimento projetados para ajudar agricultores e professores, entre outros, enquanto o país luta para reduzir seu fardo da dívida externa de US$ 78 bilhões, que equivale a 68% do PIB — muito acima dos 55% recomendados pelo Banco Mundial. O Projeto de Lei Financeira 2024, apresentado em maio, pretendia arrecadar US$ 2,7 bilhões de impostos adicionais, mas foi rechaçadas por uma população frustrada com um elevado custo de vida.

A mudança radical de Ruto — que chegou a enviar o Exército contra o que chamou de manifestantes “traiçoeiros” e prometeu, à noite, reprimir a “violência e a anarquia” — foi classificada pela ativista e jornalista Hanifa Adan como “relações públicas”, que questionou: “O projeto de lei foi retirado, mas vai trazer todos os que morreram de volta vivos?”. Adan convocou novas manifestações para quinta-feira em memória dos mortos, através de uma publicação no X (antigo Twitter).

A observação também foi feita pelo analista queniano Herman Manyora, para quem o anúncio de Ruto “deveria ter vindo antes” para evitar as mortes.

— Ele fez hoje o que deveria ter feito há dois dias para evitar o que passamos ontem. Me dói termos tido que esperar (…) para fazermos o que deveríamos ter feito na segunda-feira (…) E esse é um sentimento geral entre as pessoas — disse à CNN.

Mais cedo, a Associação de Médicos do Quênia afirmou que 13 pessoas morreram durante os protestos, embora o presidente da associação, Simon Kigondu, já tivesse alertado que o balanço “não é o número final”. O PRWG afirmou que a polícia tinha como alvo manifestantes jovens e desarmados fora do Parlamento e que a violência seguiu noite a dentro.

“Relatórios mostram que a polícia disparou mais de 40 vezes sobre várias pessoas em Githurai, Nairobi, entre as 22 horas e a 1 hora da manhã, muito depois do fim dos protestos”, escreveu o grupo de trabalho em um comunicado publicado pela Anistia Internacional do Quênia e citado pela CNN.

Um funcionário do Hospital Nacional Kenyatta, em Nairóbi, disse à AFP nesta quarta-feira que os médicos estavam tratando “160 pessoas”, sendo “algumas delas com lesões nos tecidos, algumas delas com ferimentos de bala”.

Há ainda relatos de cerca de 50 jovens raptados, segundo Faith Odhiambo, presidente da Law Society of Kenya — algumas das quais foram já libertadas. Os grupos de defesa dos direitos humanos acusam as forças policiais do Quênia de sequestro e desaparecimentos extrajudiciais há anos.

A prática foi condenada, na terça-feira, pela presidente da Supremo Tribunal, Martha Koome, que apelou para que os detidos fossem apresentados em tribunal no prazo de 24 horas e instou o poder judicial a investigar corretamente e a responder a todas as acusações. Os sequestros, disse, “constituem um ataque direto ao Estado de direito, aos direitos humanos e ao constitucionalismo, que são os nossos valores nacionais orientadores”.

Um clima tenso permanecia nas principais cidades do Quênia nesta quarta-feira, e as empresas reabriam lentamente em todo o país. Nas manchetes dos jornais, o caos foi apresentado como “Pandemônio”, pelo jornal Daily Nation, que afirmou que “os alicerces do país foram abalados até o âmago”, e como “Mortes, caos, raiva” pelo The Star. O Parlamento amanheceu com uma forte presença policial, e as ruas que conduzem ao edifício também foram isoladas.

Um repórter da agência de notícias francesa relatou que o cheiro de gás lacrimogêneo, usado pelos agentes de segurança contra os manifestantes, ainda impregnava o ar, enquanto grandes pedras e um carro queimado estavam espalhados próximo aos escritórios da prefeitura. Um policial que estava em frente às barricadas quebradas do complexo contou que assistiu as cenas pela TV.

— Foi uma loucura, esperamos que hoje esteja calmo — disse à AFP.

A agitação de terça-feira também alarmou a comunidade internacional, com o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmando estar “profundamente preocupado com a violência relatada”, e os EUA entoando pedidos por “moderação”. Nesta quarta-feira, Washington voltou a instar o Quênia por respeito ao direito a protestos pacíficos.

— Continuamos apelando à contenção para que mais nenhum queniano seja colocado em perigo ao exercer o seu direito de reunião pública pacífica. Esse direito está protegido pela Constituição do Quénia. Acreditamos que deve ser respeitado — disse aos jornalistas o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, John Kirby. (Com AFP e NYT)

Fonte: O Globo

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