Prédio recém-ocupado em bairro nobre de SP era de construtora acusada de estelionato

Prédio na Apiacás, em Perdizes, ocupado por movimento de moradia
Prédio na Apiacás, em Perdizes, ocupado por movimento de moradia — Foto: Maria Isabel Oliveira/ O Globo

Desde o dia 19 de abril, o esqueleto de um prédio no bairro de Perdizes, área nobre de São Paulo, exibe na fachada uma bandeira da Frente de Luta por Moradia (FLM), uma cena rara naquela região da cidade. Nunca concluído, o edifício recém-ocupado pelo movimento é o que restou da Construtora Atlântica, empresa que faliu em 2017 em meio a acusações de que vendia um mesmo apartamento para diversas pessoas, e cujo principal sócio chegou a ser preso após uma suposta tentativa de fuga para Israel.

Localizado no número 797 da rua Apiacás, o prédio abriga 108 pessoas no momento. São famílias que vieram de outra ocupação em um edifício abandonado na Avenida Santa Inês, na Zona Norte da cidade, desocupado após uma ação de reintegração de posse. Dias após a nova invasão, um processo de reintegração de posse relativo ao próprio edifício de Perdizes foi protocolado na Justiça. Na segunda-feira (29), a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais deu parecer favorável à desocupação, que, entretanto, ainda não foi cumprida.

Os integrantes da FLM contam que não encontraram seguranças ou qualquer tipo de resistência ao entrarem no terreno na noite daquela sexta-feira (19). O que separava o imóvel da rua era apenas uma frágil barreira de madeirite.

— As madeiras estavam estragadas e podres. Foi fácil entrar — diz Fabiana Costa, 36, que junto com os três filhos de 10, 12 e 19 anos, usa metade de um dos apartamentos como moradia.

— A entrada no prédio foi muito tranquila. A polícia só foi aparecer no dia seguinte (sábado, 20) — completa Geni Monteiro, coordenadora da FLM. — No primeiro dia, viemos em um grupo de cerca de 60 pessoas. Agora, são 108 — ela afirma.

O GLOBO teve acesso à íntegra de processos relacionados ao edifício. Eles revelam a trama de aparentes golpes, intensas disputas judiciais e até uma prisão internacional.

Em 2013, a Atlântica comprou cinco sobrados na Rua Apiacás por 5 milhões de reais, demolidos para formar o terreno do empreendimento. A obra avançou até setembro de 2016, quando 60% do trabalho estava completo e se iniciava o acabamento. O teto dos andares já tinha forro, a parte hidráulica e as instalações elétricas estavam prontas e algumas unidades ganharam até vaso sanitário, porcelanato e pias de mármore. O condomínio teria oito andares, salão de festas, academia com sauna, sala de jogos e uma piscina, hoje em concreto puro nos fundos do prédio.

Segundo os processos, faltou R$ 2,9 milhões para o término da construção. Mas, além da questão financeira, a empresa lidava com uma série de problemas na Justiça quando as obras pararam.

Em 2015, a Atlântica fez um pedido de recuperação judicial para se proteger de credores. No ano seguinte, quando as obras foram paralisadas, começaram a surgir denúncias de que a construtora vendia o mesmo apartamento para mais de uma pessoa. Em 2017, a Justiça paulista negou o pedido da empresa e decretou a falência do negócio.

Na decisão, o juiz destacou que ao menos seis empreendimentos da marca em bairros paulistanos como Vila Mariana, Consolação e Pompeia tiveram a mesma unidade vendida para diferentes proprietários. Um prédio na Rua Augusta, região central da cidade, teve uma unidade vendida para seis compradores.

— Quando assumimos (o caso), eram mais de 3 000 ações judiciais contra a empresa. Foi extremamente complexo, apareciam processos de um apartamento que teria sido vendido para mais de uma dezena de pessoas — diz Luiz Constantino, um dos diretores da Expertisemais Serviços Contábeis, que administra a massa falida do Grupo Atlântica.

O engenheiro Jaime Serebrenic, principal sócio da construtora à época, chegou a ser preso pela Interpol em 2017, em Madri, na Espanha. Ele enfrentava um processo por estelionato na Justiça paulista, e as autoridades suspeitaram que poderia estar fugindo para Israel. Pessoas próximas ao empresário afirmam que, depois de ser trazido de volta ao Brasil, Serebrenic não permaneceu nem uma semana detido. Ele nunca foi condenado por estelionato e faleceu em 2021, aos 81 anos.

O prédio da Apiacás foi o único da Atlântica que restou inacabado. Segundo Constantino, o endereço ainda tem uma série de ações pendentes na Justiça. Nelas, ao menos 74 pessoas alegam ter comprado os 32 apartamentos do condomínio. Um único apartamento teria quatro donos, segundo os processos. O terreno do prédio deve atualmente R$ 930 mil em IPTU para a prefeitura de São Paulo.

— Trabalho na região há 29 anos. Houve outra invasão neste edifício, por volta de 2022, mas não chegaram a ficar uma semana lá dentro. Também entraram ali outras vezes para roubar canos, cobre, ferro — conta José Andrade, zelador de um condomínio vizinho ao prédio.

No térreo do edifício, uma dezena de crianças jogava futebol na quinta-feira (25), enquanto os adultos se organizam para limpar os andares com água e sabão. Geladeiras, fogões, armários, colchões e cobertas já fazem parte do cenário. As sacadas nunca foram tapadas, de modo que as famílias improvisam madeirites para se proteger do frio durante a noite.

— Quando entramos aqui, encontramos muito lixo e até pombo morto — conta a manicure Regiane Matias, da FLM.

Apesar do esforço do grupo para se estabelecer no local, a ação de reintegração de posse pode ser cumprida a qualquer momento.

— Tomamos as providências assim que ficamos sabendo da invasão — diz Constantino, da massa falida da construtora.

Mesmo que o edifício seja desocupado, é provável que volte a ficar vazio por tempo indeterminado.

— Esse prédio tem assuntos jurídicos ainda não resolvidos. Já vendemos vários ativos da massa falida e fizemos acordos para que as comissões de adquirentes (proprietários) tocassem outras obras da construtora. Sobre o prédio (da Apiacás), posso dizer que estamos mais próximos do que nunca da resolução — afirma Constantino.

Se o edifício tivesse sido entregue no passado, os apartamentos — com 80 metros quadrados, sacada, três dormitórios e três vagas de garagem — teriam atualmente um valor milionário, segundo quem atua no ramo imobiliário na região.

— O metro quadrado na área fica na faixa de 14 500 reais — diz Luiz Alberto Chiaroni, sócio de uma imobiliária na mesma Rua Apiacás. — Um apartamento naquele edifício valeria facilmente R$ 1,2 milhão. Seria o tipo de produto que tem alta demanda no bairro — avalia o corretor.

Fonte: O Globo

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