Por onde a vida selvagem andou durante a pandemia? Um novo estudo dá algumas pistas

Lobo cinza tem a imagem capturada por câmera de movimento no Parque Itcha Ilgachuz, no Canadá
Lobo cinza tem a imagem capturada por câmera de movimento no Parque Itcha Ilgachuz, no Canadá — Foto: Cole Burton, UBC WildCo via The New York Times

Nos primeiros meses da pandemia da Covid-19, quando cada linha do noticiário parecia assustadora, havia uma narrativa um pouco mais amena: com os humanos trancados em suas casas, o mundo estava novamente a salvo para os animais selvagens, que agora podiam vagar em paz pelas cidades, estacionamentos ou campos que outrora estavam cheios de gente.

Mas um novo estudo global, que usou câmeras para rastrear atividades humanas e de animais selvagens durante as quarentenas sugerem que a história não foi assim tão simples.

— Nós embarcamos em uma noção simplista — disse Cole Burton, um ecologista especializado em vida selvagem e conservação na Universidade da Columbia Britânica, no Canadá, liderou o estudo. — Você sabe, quando os humanos param, os animais dão um respiro de alívio e se movem mais naturalmente. Mas o que vimos foi bem diferente.

Apesar dos humanos terem desaparecido de alguns lugares durante as quarentenas, eles apareceram em outros, como em parques que ficaram abertos quando poucas atividades ainda estavam disponíveis, a pesquisa apontou. E havia muitas variações na forma como os mamíferos selvagens responderam às mudanças no comportamento humano. Carnívoros e animais em áreas remotas e rurais, por exemplo, se tornaram mais ativos quando as pessoas desapareceram do cenário, enquanto os herbívoros e urbanos foram menos vistos.

O estudo, publicado na revista Nature Ecology & Evolution na segunda-feira, adensa e complica a compreensão dos cientistas sobre a chamada “antropausa”, quando as quarentenas da pandemia alteraram radicalmente o comportamento humano. Ele também realça as diferentes formas como os humanos afetam as vidas dos animais selvagens, assim como a necessidade de esforços de conservação mais variados, afirmam os autores.

— Não existe uma solução única quando falamos sobre mitigar os impactos da atividade humana sobre a vida selvagem — disse Kaitlyn Gaynor, uma ecologista especializada em vida selvagem e conservação na Universidade da Columbia Britânica. — Isso porque nós vimos que nem todas as espécies respondem da mesma forma às pessoas.

Câmeras de movimento, que tiram automaticamente fotos de animais que passam diante delas, se tornaram ferramentas cruciais de pesquisa para os biólogos. O novo estudo está baseado em informações de 102 diferentes projetos de captura de imagens em 21 países, na maior parte da América do Norte e Europa, mas há exemplos da América do Sul, África e Ásia. Os dados permitiram aos cientistas estudar a atividade de 163 diferentes espécies de animais selvagens, e descobrir com que frequência os humanos estavam aparecendo naqueles mesmos lugares.

— Um dos pontos centrais deste relatório é que você consegue ter informações sobre os humanos e sobre os animais — disse Marlee Tucker, ecologista na Universidade Radboud, na Holanda, que não estava envolvida no trabalho.

Durante o período de quarentena, a atividade humana caiu em alguns dos locais pesquisados, enquanto aumentou em outras. Em cada um desses locais, os pesquisadores compararam a frequência em que os animais selvagens foram encontrados em períodos de alta atividade humana, e durante períodos de atividade humana reduzida, sem se preocupar se essa queda na presença de pessoas estava relacionada à pandemia.

Animais carnívoros, como lobos e linces, aparentam ser altamente sensíveis a pessoas, e representaram a maior queda de atividade quando os humanos voltaram a determinados locais.

— Esses carnívoros, especialmente os maiores, têm uma longa história de antagonismo com os humanos — disse Burton. — As consequências para carnívoros que se depararam com as pessoas por vezes foram mortais.

Por outro lado, a atividade de grandes herbívoros, como os cervos e alces, aumentou com a maior presença de humanos. Isso pode estar relacionado à necessidade desses animais se movimentarem com mais frequência para evitar as grandes multidões. Mas se as pessoas ajudam a manter os carnívoros longe, eles também “protegem” os herbívoros.

— Os herbívoros tendem a ter menos medo das pessoas, e elas podem usar os humanos como escudos para se proteger dos carnívoros — disse a dra. Tucker, que elogiou os autores do estudo por “terem sido capazes de diferenciar todos esses impactos humanos”.

A localidade também importa. Em áreas rurais e pouco desenvolvidas, onde o ambiente não foi tão modificado pelos humanos, os animais se tornaram menos ativos conforme a atividade das pessoas aumentou. Mas em cidades e regiões desenvolvidas, mamíferos selvagens ficaram mais ativos conforme os próprios humanos retomaram suas atividades.

— Foi um pouco contraintuitivo e surpreendente — disse a dra. Gaynor. — Nós demos uma olhada mais próxima, e muita atividade estava acontecendo à noite. Os animais estavam se tornando mais noturnos.

Os pesquisadores sugerem que vários fenômenos podem explicar essas tendências. Talvez as espécies e indivíduos que tenham persistido nesses ambientes sejam os mais tolerantes e habituados aos humanos. Carcajus, por exemplo, só estão presentes em áreas com pouca atividade humana.

E os animais que circulam mais à noite podem ser atraídos por recursos humanos, como comida e lixo, e ficaram mais presentes quando esses recursos eram abundantes, mas suas “explorações” foram alteradas para o período noturno, para reduzir o risco de encontros com humanos.

— Parece ser uma adaptação dos animais para coexistir com as pessoas — disse o dr. Burton. — Esses animais estão fazendo sua parte na coexistência.

Mas ainda há exceções. Nos locais mais desenvolvidos, grandes onívoros, como ursos e javalis selvagens, foram avistados com menos frequência conforme a atividade humana aumentou. Apesar de serem atraídos por recursos humanos, incluindo latas de lixo e árvores frutíferas, era simplesmente muito arriscado para os animais grandes irem atrás desses itens quando muitas pessoas estavam ao redor.

— Somos muito mais tolerantes com um gambá em nosso quintal do que com um urso — afirma a dra. Gaynor.

Muitos estudos sobre os efeitos dos humanos em animais selvagens focam em um pequeno número de espécies e locais, mas destacar alguns desses padrões mais gerais é uma contribuição real à literatura científica, afirma Jerrold Belant, um cientista de conservação de vida selvagem na Universidade do Estado do Michigan, que não participou do estudo.

— É importante ver algumas análises de 9 mil m² que podem nos fornecer dados mais amplos e a capacidade de pensar de forma generalizada — disse. — Juntar tudo isso em um mesmo pacote é realmente útil e permite avanços concretos.

Fonte: O Globo

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