Pesquisadoras da UFRN desenvolvem índice que avalia sistemas alimentares no Brasil

Mais de 30 milhões de pessoas no Brasil estavam em situação de insegurança alimentar em 2022. Isso é o que apontam os dados publicados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan). Esse levantamento possui relação direta com  a obesidade, a desnutrição e os efeitos das mudanças climáticas, os quais são influenciados por sistemas alimentares. Diante desse quadro, um grupo de pesquisadoras desenvolveu um índice para medir a sustentabilidade dos sistemas alimentares no Brasil. A iniciativa contou com uma parceria entre o Laboratório de Nutrição (LabNutrir), vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e a Universidade de São Paulo (USP).

Com o título Medindo a sustentabilidade dos sistemas alimentares em países heterogêneos: aplicabilidade da versão atualizada do índice multidimensional brasileiro, a pesquisa foi publicada em 2022 na revista Sustainable Development. O artigo tem como autores Laura Porciúncula, doutoranda do Departamento de Nutrição (DNUT/UFRN), Marina Maintinguer Norde, da Faculdade de Ciência Pública (USP), Giovanna Garrido, do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), Nadine Marques Nunes- Galbes, da Faculdade de Ciência Pública (USP), Flávia Mori Sarti, da Escola de Artes, Ciências e Hispanidades (USP), Dirce Maria Lobo Marchioni, da Faculdade de Ciência Pública (USP) e Aline Martins de Carvalho, da Faculdade de Ciência Pública (USP).

 

Um sistema alimentar engloba diversos elementos que vão além do alimento em si, como sua produção e seu descarte – Foto: Cícero Oliveira – Agecom/UFRN

De acordo com a Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, em português, os sistemas alimentares estão relacionados às atividades ligadas à produção, à agregação, ao processamento, à distribuição, ao consumo e ao descarte de produtos alimentares originários da agricultura, silvicultura ou pesca e a partes dos ambientes econômicos, sociais e naturais. Esses sistemas envolvem a cadeia alimentar e o ambiente alimentar, a nutrição humana e as interações desses elementos entre si, bem como as interações com os contextos econômico, social e ambiental. 

Um sistema alimentar sustentável produz, comercializa e consome alimentos em um equilíbrio entre a economia e a conservação do meio ambiente, explica Laura Porciúncula, uma das autoras da pesquisa. “São utilizados meios de produção que respeitem e prosperem a diversidade, como a agroecologia e a agricultura familiar, em desvantagem aos latifúndios e monoculturas atuais, como forma de garantir alimento em quantidade e qualidade suficientes para a população, concretizando o direito humano à alimentação adequada e segurança alimentar e nutricional”, completa.

Para contribuir com a segurança alimentar 

A pesquisa segue, nesse sentido, dois principais objetivos. Em primeiro lugar, apresentar a atualização e a melhoria do Índice Multidimensional para Sistemas Alimentares Sustentáveis (MISFS), desenvolvendo o MISFS-Revised (MISFS-R), uma versão revisada do índice que mede a sustentabilidade de sistemas alimentares a nível internacional. Em segundo lugar, mostrar as funções do MISFS-R, a fim de descobrir os aspectos relacionados à sustentabilidade no Brasil, o qual utilizou uma análise de cluster, uma representação usada para verificar as semelhanças e as prioridades dos estados brasileiros relacionados aos sistemas alimentares. 

 

A garantia de que a população terá uma alimentação de qualidade e sem prejudicar o meio ambiente é a principal preocupação dos sistemas alimentares – Foto: Cícero Oliveira – Agecom/UFRN

Foi a partir desses elementos que, em parceria com a organização não governamental World Wide Fund for Nature (WWF – Brasil), as pesquisadoras desenvolveram o MISFS-R. O índice utiliza um conjunto de dados oficiais do Brasil e inclui indicadores selecionados em nível estadual para medir a sustentabilidade do sistema alimentar no país. Diante disso, a necessidade de avaliação local da sustentabilidade do sistema alimentar cresceu mediante as ameaças da pandemia de covid-19 à segurança alimentar no Brasil.

Este índice pode ser usado como um parâmetro para comparar localizações geográficas, analisadas por meio de indicadores, bem como para investigar a interação entre eles. A versão atualizada do MISFS-R resultou em diversas vantagens, entre as principais está o maior alcance entre as regiões do país, além de colaborar para o entendimento dos aspectos ambientais e socioeconômicos de cada estado. Esses fatores contribuíram para a discussão sobre estratégias de melhoria da sustentabilidade do sistema alimentar dos estados brasileiro. 

Laura salienta a relevância da pesquisa para a sociedade brasileira, citando alguns pontos importantes. “Fornecer um panorama de como se comportam os principais aspectos necessários para garantia de um sistema alimentar sustentável no país, com seus recortes regionais e, assim, poder identificar quais os principais problemas, dificuldades, e as potencialidades de cada local de um país que tem dimensões continentais e uma diversidade de sistemas. Assim, políticas públicas podem ser mais bem endereçadas no sentido de melhorias sobre os aspectos de maior fragilidade”, pontua. 

 

Laura teve o papel de coletar dados que contribuam para toda a pesquisa – Foto: Art’s Formaturas 

“Revisamos todos os indicadores presentes no MISFS, atualizamos os que tinham dados mais recentes disponíveis e incluímos novos que consideramos relevantes para avaliar a cadeia produtiva e de consumo de alimentos no país”, diz Laura sobre o desenvolvimento do trabalho. A doutoranda comenta, ainda, que a pesquisa contribuiu para categorizar cada classe de índices nas dimensões social, nutricional, ambiental e econômica, seguindo os documentos mais atualizados sobre o conceito de Sistemas Alimentares Sustentáveis da FAO.

A pesquisadora conta que sua atuação na produção acadêmica foi voltada para a coleta de dados, etapa essencial para a construção da pesquisa. Esta fase foi feita a partir de fontes secundárias de dados públicos e relatórios que foram disponibilizados por pesquisas realizadas anteriormente, como também censos e relatórios oficiais. “Para os novos indicadores, buscamos os dados públicos, mas, infelizmente, a pesquisa foi realizada em uma época em que os dados sobre agricultura familiar pararam de ser coletados”, relata.

De acordo com informações disponibilizadas no portal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a última coleta de dados sobre agricultura familiar realizada pelo Censo Agro foi feita em 2017. O estudo estatístico que investiga informações sobre os estabelecimentos agropecuários, características do produtor e do estabelecimento, não foi realizado nos anos posteriores. Essa foi uma das dificuldades enfrentadas por Laura, que ressalta o impasse na procura de informações mais atualizadas sobre a agricultura familiar.

A sustentabilidade e o LabNutrir

Apoiar a agricultura familiar faz parte do caráter do Laboratório Horta Comunitária Nutrir (LabNutrir), no DNUT, da UFRN, além de buscar promover um consumo que contribua para a proteção do meio ambiente, visão que faz parte da ideia de sustentabilidade nos sistemas alimentares. A iniciativa nasceu em 2017 quando um grupo de professores da Universidade, juntamente com alunos, servidores e membros da comunidade iniciaram o processo de implantação da horta. 

Horta do LabNutrir é um espaço de aprendizado – Foto: Cícero Oliveira – Agecom/UFRN

O propósito principal era desenvolver um espaço com plantas alimentícias da biodiversidade brasileira, em que houvesse, também, oportunidades de aprendizado e de convívio social. Em 2018, a UFRN criou o LabNutrir com um caráter institucional ao espaço de horta e às atividades de ensino, pesquisa e extensão integradas ao Laboratório.

A professora do DNUT e uma das idealizadoras do LabNutrir, Michelle Jacob, pontua que um dos objetivos é desenvolver estudos sobre o consumo que a população tem sobre alimentos negligenciados, como plantas não convencionais, algas que poderiam ser consumidas e não consumidas, fungos, bem como entender o consumo de animais silvestres no Brasil. “Procuramos compreender como se dá o consumo desses alimentos pelas pessoas, e a gente sabe que pelas pesquisas que desenvolvemos esse consumo é considerado muito baixo”, ressalta. 

Michelle comenta que, no LabNutrir, há mais de 100 tipos de plantas diferentes. Para a professora, quando se fala sobre sustentabilidade e sistemas alimentares, uma das maiores dificuldades está relacionada à dieta, a qual tende a ser muito homogênea. Ainda segundo a sua perspectiva, é válido trazer o debate da diversidade de distintas maneiras, como uma forma de colaborar com o problema da insustentabilidade dos sistemas alimentares atuais.

Michelle conta que a finalidade do LabNutrir está voltada para o consumo com segurança de alimentos saudáveis – Foto: Valdinei Lemos Lopes

“A gente teve muito apoio da UFRN para estruturar o nosso Laboratório, que é o primeiro do Brasil a ter uma horta dentro de um curso de Nutrição, porque a gente entende a relevância desse debate para essa área, que é onde as pessoas esperam receber conselhos alimentares”, afirma a docente. Para ela, a UFRN tem um papel de vanguarda, de apoiar iniciativas como essa. Michelle acredita que esta seja uma universidade de referência no debate da sustentabilidade alimentar. “Institucionalmente, a gente tem muito apoio para desenvolver tudo isso”, complementa.

Resultados adquiridos com a pesquisa

No artigo publicado, há a apresentação das diferenças entre os estados brasileiros e os pontos mais críticos para a sustentabilidade alimentar. É nesse cenário que as pesquisadoras propõem 46 indicadores que foram calculados com base em dados oficiais e atualizados durante o estudo. “Foi fundamental adicionar novos indicadores para poder contemplar a avaliação dos sistemas de forma mais atualizada possível e contemplando a complexidade que eles possuem no país”, esclarece Laura. Esses índices foram, então, organizados em quatro dimensões, com o intuito de estruturar a sustentabilidade alimentar no Brasil, a saber: social, nutricional, ambiental e econômica.

No estudo foi levado em conta os escores das dimensões social (verde), nutricional (laranja), ambiental (azul) e econômico (amarelo) nos estados brasileiros – Foto: Revista Development

Na dimensão social, um sistema alimentar deve garantir segurança alimentar para as gerações, com base na equidade de gênero e de raça, além de condições justas de trabalho. Na dimensão nutricional, deve assegurar nutrição adequada, com a diminuição da prevalência da desnutrição em todas as suas formas. Na dimensão ambiental, um sistema alimentar deve garantir os recursos ambientais naturais para a preservação do meio ambiente. Já na dimensão econômica, um sistema econômico deve proporcionar rentabilidade, produtividade, emprego, renda e infraestrutura aos envolvidos nas atividades de produção de alimentos.

Durante o estudo, observou-se que os desempenhos econômico e ambiental foram inversamente relacionados, enquanto o desempenho econômico foi diretamente relacionado aos escores sociais e nutricionais. Dessa maneira, quatro clusters foram formados com diferenças marcantes no perfil de sustentabilidade de seus sistemas alimentares. De acordo com a pesquisadora Laura, o resultado da pesquisa foi o panorama apresentado por regiões do país, de como esses indicadores se comportam, o que permitiu identificar as fraquezas e potencialidades de cada local.

A partir desses elementos, foi levada em consideração a localização geográfica dos quatro clusters com todos os indicadores do MISFS-R. No cluster A, corresponde à região central do Brasil, os estados se destacam pela melhor acessibilidade de alimentos, maior notificação de intoxicações por agrotóxicos, menor participação de ultraprocessados na dieta da população e maior contribuição da agricultura para o Produto Interno Bruto (PIB) local. Já no cluster B, em que ocupa o litoral brasileiro, foi observado que os estados apresentaram maior custo dos alimentos, maior uso de terra e agrotóxicos na agricultura, além de estarem com menor carga de desnutrição crônica e doenças transmitidas por alimentos.

Os quatros clusters analisaram todos os indicadores da pesquisa, além levar em conta a localização geográfica – Foto: Revista Development

O cluster C, representado pelos estados do Nordeste brasileiro, as autoras identificaram que eles apresentam as menores pontuações em termos de sustentabilidade. Os resultados revelaram que esses sistemas enfrentam inúmeros desafios, como desnutrição, pobreza entre os trabalhadores e escassez de recursos hídricos. No entanto, a região apresenta aspectos positivos, como maior igualdade de gênero na gestão das fazendas e menor emissão de gases de efeito estufa na produção de alimentos. Já no cluster D, em que ocupa principalmente os territórios da Floresta Amazônica, os estados se destacaram por menor acessibilidade alimentar, subnutrição, mas também pela menor carga de doenças crônicas não transmissíveis.

Para Laura Porciúncula, poder contribuir e, principalmente, aprender com as pesquisadoras envolvidas no desenvolvimento da revisão do MISFs foi um grande privilégio. De acordo com ela, em especial, foi importante poder participar da elaboração de um dado relevante para o cenário de Sistemas Alimentares do país, principalmente ao ver os frutos desse trabalho, como os eventos regionais e os relatórios publicados. A pesquisadora acredita terem alcançado um objetivo importante: a publicização do cenário brasileiro sobre essa temática tão urgente. 

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