Paraíso nórdico em risco: problemas na Saúde expõem fissuras no Estado de bem-estar social na região

Mulher idosa interna de uma casa de repouso em Broby, na Suécia, conversa com uma funcionária
Mulher idosa interna de uma casa de repouso em Broby, na Suécia, conversa com uma funcionária — Foto: Sergei GAPON/AFP

“Eu tinha muito medo de matar alguém durante meu turno”, conta a ex-enfermeira Tanja Rossau Adsersen, de 28 anos. Após atender até oito pacientes no pós-cirúrgico ao mesmo tempo, ela não sabia se esquecera de algum medicamento ou de passar informação necessária para a colega que a substituíra.

Em “alerta total todos os dias” diante da sobrecarga de trabalho e psicológica, ela desistiu da enfermagem após engravidar há dois anos: pediu demissão, apesar de não ter um novo emprego, e hoje trabalha com procedimentos estéticos.

— Agora eu sou uma mãe melhor porque não tenho mais medo — conta ela, na clínica onde trabalha, no centro da cidade dinamarquesa de Aarhus.

A decisão da enfermeira faz parte da chamada “grande renúncia”, como definem pesquisadores dinamarqueses ouvidos pela reportagem. Em 2022, 20% dos funcionários municipais no cuidado de saúde deixaram o serviço — mais da metade deles, abaixo dos 25 anos — de acordo com um relatório do governo. A evasão é uma das raízes do “maior problema” do setor da saúde dinamarquês: a escassez de trabalhadores, nas palavras da ministra do Interior e da Saúde. A realidade, porém, afeta não apenas a Dinamarca, mas também as outras quatro nações nórdicas — Suécia, Noruega, Finlândia e Islândia — expondo lacunas no Estado de bem-estar social construído por esses países ao longo do século XX e gerando preocupações de longo prazo, de acordo com especialistas e pesquisas dos diferentes países.

De maneira geral, é um reflexo — e também consequência — do envelhecimento da população. os cinco países viram nos últimos anos a proporção da população acima dos 65 anos aumentar, em média, 34%.

Com isso, os países enfrentam dois problemas. Idosos são os que mais utilizam os serviços da saúde, o que leva a uma maior procura do setor. Além disso, há mais profissionais se aposentando, enquanto o grupo jovem em idade de trabalho não acompanha esse crescimento.

Esse desequilíbrio pressiona um setor já sobrecarregado pela carga de trabalho que exige turnos estendidos e plantões noturnos e aos fins de semana, particularmente no caso de enfermeiros e de quem trabalha com idosos. A carga horária é a maior reclamação dos profissionais e o que torna tão difícil tanto a retenção como o recrutamento de profissionais. O resultado: os poucos trabalhadores que sobram se sentem mais atolados e pressionados.

— Muitos dos meus colegas na faculdade pensavam em continuar estudando para se tornarem professores, para não terem que trabalhar [em hospitais] — conta Adsersen.

A Dinamarca estima uma escassez de 15 mil funcionários na área até 2035, o que levou o governo a firmar um acordo no fim de janeiro para facilitar a entrada de mil imigrantes para o setor de saúde e cuidados. Isso num país que já tentou forçar refugiados sírios a voltarem a seu país natal e introduziu leis visando limitar o número de pessoas “não ocidentais” em determinados bairros.

O problema da evasão e falta de funcionários no país é mais latente não nos escalões mais graduados, como médicos e enfermeiros, mas no de assistentes e ajudantes, de acordo com pesquisadores. Eles compõem a maior parte dos trabalhadores da área e carregam, praticamente sozinhos, a carga dos turnos estendidos, já que se ocupam dos lares de idosos e outros serviços que demandam atendimento 24 horas por dia.

Adsersen, a enfermeira dinamarquesa, trabalhou por um período prestando cuidados domiciliares a idosos e relata que “não havia tempo suficiente” para tratar cada um. Com diversos pacientes para atender em um dia, ela não conseguia fornecer todo o auxílio necessário.

— Você tem um tempo específico, porque talvez a próxima pessoa que vai visitá-lo só viria depois de seis horas, e eles precisam ir ao banheiro — conta. — Era tão triste.

Há um terceiro fator no cenário dinamarquês que contribui para o problema: seu setor produtivo aquecido e o bom momento de suas multinacionais.

O mesmo acontece com as oportunidades de cursos universitários que precisam “disputar” os jovens disponíveis. Naturalmente, um setor que exige muito, mas não é tão compensador financeiramente, vai ser deixado de lado. Essa situação levou também ao aumento de pessoas sem formação em saúde ou cuidados.

— A questão que temos de abordar é que tipo de tarefas esses profissionais não qualidades podem executar sem constituir uma ameaça à segurança dos pacientes — afirma Mickael Bech, membro da Comissão de Robustez do Setor de Saúde dinamarquês

Na Finlândia, um estudo publicado em 2023 com 2 mil enfermeiros que trabalham com idosos no país concluiu que um terço deles não se sente capaz de providenciar cuidados suficientes. E o governo estima que o país precisa de mais 30 mil enfermeiros até 2030.

Teppo Kröger, diretor do Centro de Excelência em Pesquisa sobre Envelhecimento e Cuidados da Universidade de Jyväskylä, aponta dois problemas principais na Finlândia: falta de trabalhadores e de recursos no setor.

É um “ciclo vicioso”, ele diz: os recursos não estão no nível adequado, então a equipe de funcionários também não. Logo, o trabalho se torna mais difícil e mais pessoas deixam o setor, o que por sua vez mina o trabalho de quem permaneceu.

— Mesmo que houvesse mais pessoal disponível, não haveria recursos suficientes para empregá-los — explica o pesquisador.

Apesar de terem territórios de distintos tamanhos, Dinamarca, Finlândia, Suécia e Noruega têm um outro problema em comum: desequilíbrios na distribuição dos cuidados de saúde em seus municípios e áreas rurais.

Na Noruega, por exemplo, mesmo com recursos e salários melhores do que nos vizinhos, as “longas distâncias” dificultam o trabalho do setor, afirma o médico Gunnar Bovim, que liderou uma comissão montada pelo governo para avaliar o setor da saúde.

— Há um problema em fazer com que as pessoas consigam o serviço de enfermagem domiciliar se tiverem que percorrer 40 quilômetros — diz.

O pesquisador sugere tornar mais eficazes os serviços de saúde e sociais para lidar com o problema, além de promover mais digitalização e desenvolvimento tecnológico.

Nos nórdicos, em geral, a maior parte do setor da saúde é responsabilidade das prefeituras. Em 2023, na Finlândia, o governo alterou isso, passando o bastão para conselhos regionais em uma tentativa de reduzir desigualdades na prestação de serviço.

Já na Dinamarca, governos locais atuam para reduzir as diferenças no trabalho. Algumas prefeituras começaram a distribuir os turnos extras entre todos os trabalhadores do setor, a fim de aliviar a carga do segundo escalão de trabalhadores.

A questão geográfica anda lado a lado com a demográfica. Com cada vez mais jovens se mudando para as grandes cidades para estudar ou trabalhar, pais e mães, ao chegar numa idade mais avançada, passam a não ter mais o cuidado informal dos filhos, dizem especialistas.

E todo esse cenário põe uma questão maior sobre o Estado de bem-estar social no qual os nórdicos são formados. Cidadãos pagam altos impostos porque confiam que o Estado dará retorno em diversos serviços, incluindo acesso à saúde gratuita.

— Quando há cada vez mais lacunas entre as promessas oficiais e a realidade, isso pode se tornar [um desafio] muito grande — diz Kröger, o pesquisador da Finlândia. — E isso pode constituir algum tipo de ruptura. Essa é certamente uma possibilidade no futuro.

Fonte: O Globo

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