Os nomes do golpe e as nomenclaturas sem fim

Por muito tempo, o que aconteceu em 1964 tinha um nome claro e simples: golpe militar. Foi na última efeméride redonda, em 2014, que comecei a ouvir o termo "golpe civil-militar", diz o autor; na imagem, manifestação em memória da ditadura militar

Por muito tempo, o que aconteceu em 1964 tinha um nome claro e simples: golpe militar. Foi na última efeméride redonda, em 2014, que comecei a ouvir o termo “golpe civil-militar”.

A ideia era, como sempre, carregar na crítica. Tratava-se de responsabilizar não só os generais, mas aqueles que os financiavam, Fiesp e companhia. Mais ainda: era preciso lembrar os governadores, os congressistas, a imprensa, os advogados, os padres, as senhoras católicas que pediam e aplaudiram os tanques na rua.

“Golpe civil-militar” podia ser, sem dúvida, um nome mais preciso. Só que, para quem pertence a uma geração mais antiga, isso trazia um problema. Os próprios golpistas, que chamavam o golpe de “revolução”, insistiam na ideia de que aquilo não era uma simples quartelada. Queriam justamente mostrar que “a sociedade civil”, ou, como preferiam, “a nação”, estava unida na derrubada João Goulart.

A pretensão dos golpistas se evidenciava pelo fato de que Castelo Branco, Costa e Silva, todos os generais-presidentes, usavam paletó e gravata ao ocupar o cargo. Era o toque “civilizado” que os distinguiria dos demais ditadores latino-americanos.

Com o descrédito das falas em torno de “revolução”, e com o progressivo isolamento dos militares, a aparência “civil” que eles buscavam adquirir foi esquecida. Eram generais, e pronto. Assim, quem viveu o final dos anos 70 e o começo dos anos 80 se acostumou ao nome “golpe militar” puro e simples.

Foi então que, aí por 2014, então, o termo “golpe civil-militar” surgiu como uma nova descoberta, ou denúncia. Esquecera-se a mistificação levada a cabo pelos próprios militares, fantasiados de civis, e passou-se a enfatizar igualmente o papel de quem tinha farda e quem não tinha.

Agora, pelo que andei lendo, há quem sugira um nome ainda mais extenso para o golpe.

Para Edson Teles, professor de filosofia política na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), caberia chamá-lo de “golpe empresarial-racista-torturador-religioso-patriarcal-imperialista-militar”. Foi o que ele escreveu no site A Terra é Redonda.

Sim, o golpe foi tudo isso –e, se quisermos acrescentar mais coisas, anti-indígena, anti-patrimônio histórico, anti-ecologia. A lista não teria fim; verdadeira, mas pouco prática.

Não acho que a proposta seja adotar esse tipo de denominação gigante. Mas é fato que entre os setores progressistas parece haver uma tendência para desconfiar dos substantivos mais simples e genéricos.

Antes, falava-se apenas em “capitalismo”, ou “imperialismo”, e tudo o que existe de condenável nesses sistemas estava, por assim dizer, embutido no conceito. Há alguns anos, entretanto, surgiu no interior da esquerda uma polêmica em torno de uma nova denominação: o “capitalismo racial”. Teóricos como Olúfémi Táíwo e Liam Kofi Bright defendem a tese de que falar simplesmente de “capitalismo”, como fazia Marx, levava a desconsiderar a importância que a opressão das populações não-brancas teve na implantação e na sobrevivência do sistema. Outros teóricos, como Michael Walzer, contestaram essa visão.

O problema de terminologia acaba ficando enrolado, conforme o peso que se dá ao adjetivo. Se dissermos que somos contra o “capitalismo racial”, será que isso significaria que achamos OK com um “capitalismo não-racial”? E, se todo capitalismo é “racial”, por que seria necessário chamá-lo assim? Que tal “racial-belicista-cancerígeno”? Conforme a luta em que estivermos engajados (em favor da paz, contra alimentos ultraprocessados, por exemplo), haverá um qualificativo à disposição.

O que se revela, a meu ver, é o receio de “deixar alguma coisa de fora”. Caso típico é o do movimento anteriormente chamado de LGBT: a sigla foi ganhando novas letras, para novas identidades e novas minorias, dando-se ao luxo de ainda incluir um sinal de mais (+) para o que ainda esteja por aparecer.

Mas o problema vai além de um simples desdobramento vocabular ao infinito. Talvez se trate, no fundo, da atual incapacidade de se pensar em termos universais. O pensamento progressista se afirmava antigamente, sem maiores problemas, com a defesa dos direitos do homem –ou da pessoa humana. E isso incluía todo mundo. Não havia motivo para achar que alguém estivesse automaticamente, ou implicitamente, excluído dessa bandeira.

Hoje, as coisas não parecem ocorrer desse modo. Tudo precisa ser reafirmado, relembrado, em suas menores diferenças, em suas dezenas de identidades. É óbvio, para quem é da minha geração, que quando falo “todos”, estou incluindo homens, mulheres, transgêneros, tudo. Acredita-se que isso não é mais suficiente: precisamos falar em “todos, todas e todes”. Mera questão de convenção, talvez. Um bom lembrete, quem sabe, a respeito das diferenças de gênero que existem.

Mas o problema, sem trocadilho, é que com isso corremos o risco de perder uma ideia importante: a ideia de que existe um “todo” –uma humanidade inteira, e que não vamos conseguir chegar a ela simplesmente somando uma parte por vez.

Fonte: Poder360

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