O que pode estar por trás do aumento de mortes por ataques de cães no Brasil

A cabeleireira teve o braço direito amputado e precisou ficar 28 dias hospitalizada -  (crédito: Arquivo pessoal)
A cabeleireira teve o braço direito amputado e precisou ficar 28 dias hospitalizada - (crédito: Arquivo pessoal)

A cabeleireira Maria Teresa dos Santos, 51 anos, viu sua vida mudar após ser atacada pelo cachorro da família em julho do ano passado.

A moradora de Taubaté (SP) estava sozinha em casa quando, ao se abaixar para brincar com o animal, foi atacada por ele.

“Ele veio, colocou a cabeça no meu ombro e fiz carinho. Quando me virei, ele me mordeu no pescoço. Não sei o porquê de ele ter feito isso, ele não latiu e nem rosnou”, conta.

Segundo Maria Teresa, nesse momento ela caiu no chão e passou a ser mordida diversas vezes pelo animal, que criava havia quatro anos. Ela relata que tentou se levantar vagarosamente para não assustar o cachorro, mas não conseguiu.

A cabeleireira então passou a gritar e a pedir ajuda aos vizinhos, que foram até o portão do imóvel para tentar atrair a atenção do animal e, assim, cessar o ataque.

“Eu fiquei uns 40 minutos no chão. Ele mordia e parava. Achei que não iria sobreviver e comecei a rezar”, recorda.

“O Samu chegou para me socorrer, mas não podia entrar por causa do cachorro. Foi quando meu namorado chegou, abriu a porta da casa e mandou o cachorro entrar, e ele obedeceu”, diz.

A cabeleireira foi socorrida em estado grave com mordidas no rosto, cabeça e braços.

No hospital, precisou passar por cirurgias — uma delas para amputar o braço direito. Ela ficou 28 dias hospitalizada, sendo 14 deles em coma na UTI (Unidade de Terapia Intensiva).

“Os médicos não me deram muitas chances de vida, mas eu estou aqui e sou um milagre de Deus. Perdi um braço e quando saí do hospital, não tinha movimentos no outro. Apesar de sentir muitas dores, minha recuperação considero que foi rápida. Fiz seis meses de fisioterapia e agora faço terapia ocupacional para tentar retomar os movimentos da mão”, conta.

Quanto ao animal, a cabeleireira diz que foi recolhido pelo centro de zoonoses. Depois disso, não teve mais informações sobre ele.

O cachorro, segundo Maria Teresa, não tinha raça definida, mas era de porte grande, pesando em torno de 50 kg. Ele chegou à família quando filhote e tinha quatro anos na época do ataque.

“Ele era muito dócil e não estranhava as pessoas. Ele sempre interagia com as clientes do salão a ponto de encostar nelas e pedir carinho”, lembra.

No ano passado, 51 pessoas morreram no país após serem atacadas por cães. O número é o maior já registrado desde 1996, quando o Ministério da Saúde começou a fazer essa contabilização.

Dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) apontam ainda que esse número é 27% maior do que o registrado em 2022, quando foram registradas 40 mortes por essa causa.

O Estado de São Paulo lidera o ranking de óbitos por ataques de cães. Nos últimos cinco anos, foram 44 casos. Somente em 2023, foram 19 mortes, aumento de 137,5% em relação ao ano anterior.

Na sequência, está o Rio Grande do Sul, com 20 mortes, sendo 7 em 2023 — um crescimento de 40% em relação a 2022.

Para Richardson Zago, adestrador e especialista em comportamento canino há 25 anos, uma das principais causas desse aumento está na humanização dos animais.

“Hoje os cachorros são tratados como filhos, e toda a carga emocional do dono é passada para o bicho. Além disso, os cachorros não estão mais tendo contato com outros animais da espécie, fazendo com que eles fiquem desequilibrados com os seus instintos”, analisa.

Ainda segundo Zago, essa nova posição que os cães estão ocupando faz com que os tutores estejam mais permissivos na criação, deixando de lado a imposição de regras.

“Quando filhotes, os donos permitem que os cachorros subam no sofá, durmam na cama e façam o que eles quiserem. Porém, quando esse animal cresce, naturalmente ele fica mais possessivo, territorialista. Diante de uma negativa, ele se estressa. O acúmulo desse estresse faz com que um dia ele ataque”, acrescenta.

Outro fator que influencia no comportamento dos cães, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News, é que a maioria das pessoas não busca conhecer o comportamento do animal, como a linhagem e particularidades da raça, antes da chegada dele à residência.

“Muitos acham que ter um cachorro é só oferecer água, comida e um lugar para dormir. Porém, cuidar do animal vai muito além disso. É preciso saber as necessidades de cada raça, o que causa estresse e quais os sinais de que algo não está bem com o animal”, diz Zago.

O desequilíbrio emocional do animal sozinho ou aliado a fatores como sensação de ameaça, medo ou até mesmo dor pode fazer com o que esses ataques sejam contra o próprio dono, pessoas da família ou desconhecidos.

“O animal não sabe lidar com as emoções, então quando ele fica ansioso, a atitude é morder”, diz Patrícia Saraiva, educadora canina e especialista em comportamento animal.

A educadora enfatiza ainda que, quando há um ataque, a única maneira de cessá-lo é segurar no pescoço do animal.

“Quando fazemos uma pressão no pescoço, o cachorro tende a soltar. Esse enforcamento pode ser com um pano ou com um enforcador”, diz.

Um cachorro que normalmente é manso tem mais chances de atacar se estiver com dor — causada por exemplo por um machucado ou uma doença crônica que muitas vezes ainda não foi diagnosticada.

Traumas anteriores também fazem com que os animais ataquem. Por exemplo, um animal que foi resgatado de agressões pode se amedrontar com algum movimento que remeta a esse passado e, então, morder.

Não importa qual a situação, os especialistas são unânimes em afirmar que os animais sempre dão sinais de ansiedade antes de um ataque.

“Eles podem lamber os lábios, bocejar, puxar as orelhas para trás ou ficar mais isolados, mostrando que não estão confortáveis com a situação. Pela correria do dia a dia ou até mesmo desconhecimento, muitos tutores não detectam esses sinais. Quando o ataque acontece, muitos acham que é do nada, mas nunca é”, explica Saraiva.

Ainda segundo os especialistas, esses quadros de ansiedade começam meses antes de um ataque.

Os ataques provocados por animais da raça pitbull costumam chamar a atenção da população e colocam a raça, muitas vezes, como vilã da situação.

Em um episódio recente que ganhou visibilidade nacional, a escritora Roseana Murray, 73 anos, foi atacada em Saquarema (RJ) por três cães da raça. Após o ataque, em 5 de abril, Murray ficou quase duas semanas hospitalizada e perdeu um braço e uma orelha.

Os donos dos cachorros foram identificados, chegaram a ser presos temporariamente e estão respondendo na Justiça a acusações de maus-tratos a animais, lesão corporal culposa e omissão na cautela de animais.

Porém, há poucas evidências científicas consistentes de que algumas raças são mais agressivas do que outras.

Em um estudo de 2022 de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), os autores concluíram, após a análise de questionários preenchidos por tutores de cães, que são muitos os fatores que influenciam em um ataque.

“Em vez de direcionar o ataque a um único fator comum às espécies ou raças específicas, os nossos resultados reforçam como o comportamento individual, combinado com a genética, fisiologia, experiências de vida e contextos ambientais particulares dos cães interagem […]”, concluíram os autores.

Um artigo de pesquisadores publicado pela BBC News Brasil no ano passado afirmou que “há poucas evidências científicas consistentes de que algumas raças são inerentemente mais agressivas do que outras”.

“Nossas avaliações sugerem que as raças relatadas em casos de mordidas são simplesmente as raças mais populares naquela região”, disseram Carri Westgarth e John Tulloch, professores na Universidade de Liverpool, no texto.

Entretanto, os pesquisadores reconheceram que, quando se trata de ataques mortais, a maioria das raças envolvidas é “grande e poderosa” — como American bulldog e pitbulls, mas também rottweilers, pastores alemães e malamutes.

Especialistas indicam que a gravidade das lesões está mais relacionada à força do animal do que à possibilidade de ser mais agressivo ou não.

“O pinscher, por exemplo, é uma raça que morde bastante, mas por ele ser pequeno, é fácil controlá-lo, e a lesão também é pequena. O mesmo não acontece com cães de porte grande, que são fortes, pesam como um adulto e muitas vezes uma mordida pode matar”, explica Zoca.

Na hora de escolher um cachorro, é importante se atentar à tendência genética do animal, analisando o comportamento dos pais e irmãos. Isso porque grande parte do comportamento é herdado dos pais.

Os especialistas aconselham também que os cães sejam treinados para atender às regras e para evitar possíveis ataques. O treinamento pode ser feito em qualquer idade, mas quanto mais cedo começar, mais rapidamente o animal aprende.

Para o treinamento, é recomendado o método de recompensas, já que os baseados em punição estão associados a maior estresse, medo e agressão por parte do animal.

Além da genética, um estudo realizado pela Harvard Medical School mostrou que as mudanças climáticas podem afetar o comportamento dos cães, deixando-os mais agressivos.

Para a pesquisa, divulgada no ano passado, foram analisados 69.525 casos de mordidas de cães, que ocorreram em oito cidades dos Estados Unidos entre 2009 a 2018.

Segundo os pesquisadores, a probabilidade de ocorrer ataques de cães aumenta 11% nos dias em que a radiação ultravioleta (UV) é mais alta. Além disso, as altas temperaturas faziam aumentar as probabilidades de ataque em 4%.

“Assim como nós, os cachorros também se sentem desconfortáveis com o calor e isso pode gerar uma irritabilidade. Nos dias quentes, é importante ter um cuidado a mais e não os deixar com roupinhas, em ambientes muito quentes ou expostos ao sol”, diz Saraiva.

Fonte: Correio Braziliense

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