‘No G20, Brasil poderia ser mais enfático sobre urgência da reforma da governança global’, diz Maiara Folly

Maiara Folly, diretora-executiva da Plataforma Cipó
Maiara Folly, diretora-executiva da Plataforma Cipó — Foto: Divulgação

Divulgado a exatos seis meses da abertura da Cúpula do Futuro, um dos eventos centrais da Assembleia Geral da ONU este ano, documento elaborado em conjunto por UN Foundation, Blue Smoke Alliance, Iswe Foundation, Southern Voice e a Plataforma Cipó, defende a maior participação de cidadãos mundo afora nas decisões globais como medida central para a reinvenção da governança planetária. Seu modelo é a inédita reunião de indivíduos de todo o planeta realizada em 2021, na COP26, em Glasgow, na Escócia, focada na emergência climática. Uma segunda encarnação desta Assembleia de Cidadãos Globais, que agora tratará também de temas como prevenção de conflitos e a proteção dos direitos humanos, começa a tomar forma para a Cúpula de setembro em Nova York.

“Constatamos a desfuncionalidade da governança global nas guerras na Ucrânia e em Gaza, no apartheid das vacinas durante a pandemia de Covid-19 e nas respostas insuficientes à emergência climática e às questões da inteligência artificial. Não há como resgatar a efetividade das instituições sem antes recuperar sua legitimidade e só a aproximação direta com o cidadão permitirá isso. Não há outro caminho”, afirmou, em entrevista por telefone de Londres, onde vive, a diretora-executiva da Plataforma Cipó, instituto de pesquisa dedicado a temas de clima, governança e relações internacionais e liderado por mulheres, Maiara Folly.

Uma das autoras do documento, a mestre em Desenvolvimento Internacional pela Universidade de Oxford reconhece que a democratização de organismos criados após a Segunda Guerra Mundial é tarefa árdua. Mas Folly considera ser justamente o momento histórico atual, marcado pelo avanço do nacionalismo de direita, da xenofobia, das críticas à globalização e do fortalecimento de autocracias, o ideal para se enfatizar, na discussão sobre a reinvenção de organismos responsáveis pela nem sempre ritmada música política do século XX (notadamente a ONU, o Banco Mundial e o FMI), a necessidade de se ouvir a voz dos moradores da Terra. “E o Brasil pode, na qualidade de presidente do G20 este ano, ser ainda mais enfático na defesa da reforma urgente das instituições globais”.

Leia aqui os principais trechos da conversa:

Como o documento avança sobre a participação dos cidadãos em decisões globais?

Após constatar a falência da governança global, argumentamos que a participação cidadã precisa estar no centro dos esforços de reforma e renovação dos organismos. Um envolvimento mais direto e substantivo dos indivíduos nos processos decisórios globais pode ajudar, por exemplo, a romper polarizações e até ajudar a resolver disputas políticas de países. E a garantir que ideias, opiniões, experiências dos indivíduos sejam incorporadas às tomadas de decisões globais.

Mas se essa já é uma tarefa complexa em nível local, como implantá-la em esfera global, e em cenário de avanço do nacionalismo, protecionismo, anti-globalização e xenofobia?

O crescimento da extrema direita mundo afora está associado à perda de confiança dos cidadãos nas instituições que os representam, inclusive em nível global. Há a percepção de que não estão representados por estas instituições, que suas demandas não são sequer consideradas. Em última instância, não crêem que elas melhorem suas vidas, sequer sabem para o que elas servem. Não há, assim, outro caminho. Não há como resgatar a efetividade das instituições globais sem antes recuperar a legitimidade delas. E é a aproximação direta com o cidadão que permitirá que esse elemento hoje ausente no debate seja restabelecido.

Como aumentar o poder de atuação do cidadão em âmbito global sem o apoio dos governos?

Não é tarefa fácil. E sabemos que, no fim, estamos propondo que Estados potencialmente abram mão de determinados espaços de poder. Que a ONU é, por exemplo, em sua essência, governada por Estados-membros. Mas que, pela dimensão das crises atuais, é também o momento propício para se tratar do tema. Em setembro acontece a Cúpula do Futuro, com objetivo justamente de se pensar num pacto de governança global voltado para a garantia do bem-estar das pessoas. Este é o melhor momento para se repensar o espaço, a voz do cidadão, nas decisões que afetam todo o planeta. E um caminho possível é o da mobilização em âmbito local.

Por exemplo?

Criar-se uma assembléia global permanente de cidadãos. Hoje há uma lacuna enorme entre a ONU e o indivíduo. E já existem movimentos locais de debate em vários países, queremos expandi-los. A primeira vez que se tentou fazer algo desse tipo foi em 2021, com a Assembleia dos Cidadãos Globais, na COP26. Uma centena de cidadãos, representando demograficamente o planeta, debateu soluções para a crise climática, com apoio da ONU. É o modelo que nos inspira, mas queremos abranger agora os principais temas emergenciais globais, incluindo direitos humanos e segurança.

Qual foi o impacto da Assembléia dos Cidadãos Globais?

O de mostrar que é possível reunir um número grande de pessoas naquele formato e de se construir um espaço de escuta e produção de ideias que chegou aos líderes globais. O passo seguinte, defendemos, é um mecanismo permanente que possa acompanhar até que ponto algo foi implementado, na prática. Chegou-se ao momento da prestação de contas. Há, claro, maior dificuldade de se fazer isso com regimes autoritário. Mas também é importante sublinhar a enorme contradição de países democráticos que não se empenham pela defesa de um modelo celebrado internamente nos organismos globais. Há décadas se discute a necessidade de maior representatividade geográfica nas instâncias decisórias da ONU e do sistema de Bretton Woods (FMI, Banco Mundial). Essa é uma questão central.

Uma das três prioridades anunciadas por Brasília no ano em que o pais exerce a presidência do G20 é justamente a reforma da governança global. Qual a capacidade de o país aumentar a velocidade dessas mudanças?

A defesa da reavaliação do regime de cotas no FMI e no Banco Mundial pelo governo brasileiro é importantíssima. Além, claro, da revisão dos conselhos, dos boards, das instâncias que precisam ser mais representativas da realidade global, hoje monopolizadas por EUA e Europa. O Brasil conta com o apoio da maior parte dos países em desenvolvimento na defesa da implantação de processos mais transparentes, equilibrados e diversos geograficamente, e o tem feito. Mas poderia ser mais enfático. Poderia vir com mais força nas discussões, inclusive na call-to-action que o Brasil pretende lançar durante reunião ministerial do G20, a ser realizada às margens da abertura da Assembleia-Geral da ONU, em setembro deste ano.

Um dos pilares da política externa brasileira é assegurqar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança. A reforma do organismo que de fato faz diferença na ONU é factível?

O Brasil tem uma postura muito coerente a este respeito, histórica, pautada, claro, por interesses nacionais, mas muito bem embasada. E há hoje um consenso entre os estados-membros, inclusive alguns dos permanentes, como EUA e Reino Unido, de que o Conselho de Segurança precisa ser reformado. A divergência está no nível de ambição desta reforma. Há uma iniciativa do Liechtenstein que restringe o poder de veto (em casos como genocídio, por exemplo) e conta com o apoio de vários países. A cessão de poder pelas potências (vencedoras da Segunda Guerra Mundial) é o ponto central. Esperemos que não se chegue a um nível insustentável, com mais sofrimento, e estamos no limite, para essa mudança ser posta em prática.

Como o retorno de Donald Trump à Casa Branca impactaria o multilateralismo?

Seria uma catástrofe para o sistema miultilateral. Já o foi da primeira vez, a ONU e a OMC foram enfraquecidas, o sistema de disputas paralisado, os EUA suspenderam a contribuição a várias agências, e o impacto não foi apenas financeiro, mas moral também. O multilateralismo sofreu ataques sem precedentes da maior potência mundial. Por outro lado, isso reacendeu sua defesa pela comunidade internacional e segue em processo de recuperação, exemplificado pela própria Cúpula do Futuro. Um cenário com Trump seria muito pior, especialmente em relação à urgência de se tratar da crise climática.

De que modo?

Todos os dados científicos mostram que as janelas de oportunidade para se reduzir emissões estão se fechando e a cooperação internacional, neste caso, é crucial. Um presidente em Washington que nega ser este sequer um problema tem um efeito planetário devastador. Parte do Sul Global argumenta “por que tenho que reduzir emissões sem apoio financeiro dos países ricos?”. Trump também afetaria diretamente a COP30, ano que vem, no Brasil. Com ele no governo americano, seria um contexto muito difícil para países anunciarem novos compromissos e entregarem resultados.

Fonte: O Globo

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