No front na Ucrânia: Armas baratas e velhas táticas soviéticas permitem avanço da Rússia na guerra

Soldado ucraniano caminha com drone de observação na retaguarda das áreas de combate em Zarichne, Oblast de Donetsk
Soldado ucraniano caminha com drone de observação na retaguarda das áreas de combate em Zarichne, Oblast de Donetsk — Foto: Yan Boechat

Paraskovia viu a guerra chegar pela janela. Dia a dia o som das explosões parecia mais perto, até que os mísseis começaram a cair ao redor de sua pequena casa de madeira em um vilarejo a poucos quilômetros de Ocheretyno, uma típica cidade soviética na região do Donbass. Quando a encontrei, em meados de março, as linhas de combate já estavam tão perto que era possível ouvir o zumbido das bombas cortando o ar sobre nossas cabeças em direção às posições de artilharia ucraniana na retaguarda.

— Esse barulho, ele não para, as explosões são cada vez mais altas, eu só queria que o silêncio voltasse — ela me contava, sentada diante da janela, aproveitando um raro dia ensolarado do fim do inverno.

Na terça-feira a guerra chegou. Ocheretyno, a cidade onde Paraskovya viveu seus 75 anos, sucumbiu aos ataques das tropas russas. As linhas de defesa ucraniana que vinham tentando impedir o avanço das forças de Moscou sucumbiram e recuaram para estabelecer novas posições a oeste. Vídeos de soldados russos circulando pela cidade e erguendo a bandeira do país no prédio da administração municipal inundaram as redes sociais ao longo de toda essa última semana.

Ocheretyno é apenas a última de uma série de pequenas derrotas que as tropas ucranianas vêm sofrendo na região do Donbass, no leste russófono, desde que perderam a importante cidade industrial de Avdiivka. Considerada uma fortaleza, a queda de Avdiivka expôs de maneira brutal tanto a fragilidade ucraniana em homens e armas, como deixou clara a superioridade russa em sustentar uma longa guerra de atrito.

Desde então, as forças russas seguem avançando, ainda que lentamente, em direção a oeste, colocando sob ameaça um dos principais elos de ligação entre o Donbass e o resto da Ucrânia, a importante cidade de Pokrovsk. Mas esse está longe de ser o único desafio que os ucranianos têm pela frente nos próximos meses.

Ao longo dos cerca 400 quilômetros de trincheiras e linhas de combate que dividem o Donbass, as forças russas estão pressionando as posições ucranianas em diferentes pontos, por vezes conquistando territórios, por vezes apenas enfraquecendo a capacidade de defesa, e em outros, preparando grandes assaltos.

—A redução na nossa capacidade de reagir e dar apoio às tropas na linha de frente fez com que a dinâmica desta guerra se transformasse — me dizia Chief, o comandante de uma unidade de drones instalada nas Florestas de Kremina, no front norte do Donbass, enquanto acrescentava, num misto de resignação e raiva: — Nós estamos conseguindo destruir tanques, atacar blindados com drones de US$ 300 que fabricamos aqui mesmo, mas sem artilharia, não será possível ganhar essa guerra, ou mesmo impedir que os russos avancem.

Os drones, de fato, transformaram o campo de batalha nestes últimos dois anos com a introdução dos aparelhos simplórios, fabricados com impressoras 3D a poucos quilômetros do front e equipados com explosivos convencionais acionados por impacto. Pequenos, baratos, silenciosos, os pequenos drones kamikazes são o pavor de qualquer soldado que se aproxima das linhas de combate. Nas redes sociais, milhares de vídeos filmados pelos próprios aparelhos mostram ataques a unidades de combate nas trincheiras, tanques americanos de milhões de dólares sendo destruídos ou o lançamento de pequenas bombas termobáricas que transformam em fogo todo o oxigênio de um bunker.

— Nós estamos escondidos nos buracos, não temos mais a liberdade de circular pelo terreno porque sabemos que eles podem nos atacar a todo momento — me dizia Little Boy, o nome de guerra de um comandante de uma peça de artilharia de 152mm nos arredores da cidade de Chasiv Yar. — Hoje temos tão pouca munição que só podemos disparar contra equipamentos, não temos mais condições de disparar contra grupos de soldados que estão se movimentando nas linhas de frente. Há um ano, só desta posição, fazíamos ao menos 50 disparos diariamente; hoje, ainda não disparamos uma vez sequer.

Com a aprovação do apoio de US$ 60 bilhões no Congresso americano nesta última semana, a situação tende a mudar. Mas não a curto prazo. A arma operada por Little Boy ajuda a explicar por que só dinheiro não tem sido sinônimo de sucesso nesta guerra. A Ucrânia conseguiu bons resultados para defender o país nos primeiros meses de invasão utilizando-se de armamento de alta tecnologia fornecidos pelos Estados Unidos e pelos outros países da Otan, como os sistemas antitanque Javelin ou Nlaw, mísseis portáteis, altamente tecnológicos, que ajudaram a parar as colunas de tanques russos em direção a Kiev.

Mas logo a Rússia readaptou suas estratégias e retornou aos antigos protocolos de guerra soviéticos. Montou grandes estruturas de defesa ao longo das linhas de combate, abriu formidáveis trincheiras e adaptou sua capacidade industrial para produzir armamento barato, simples e em vasta quantidade. Logo, uma guerra que parecia ser tipicamente tecnológica passou a ser travada em trincheiras lamacentas, com granadas de mão, minas terrestres e artilharia muito semelhante à usada na Segunda Guerra Mundial. A indústria bélica ocidental simplesmente se viu incapaz de produzir o que a Ucrânia precisa para combater uma guerra tradicional, em que satélites, jatos ultramodernos e tanques multimilionários não são um diferencial tão grande como foram em outros conflitos.

Tanto os Estados Unidos como países europeus estão expandindo rapidamente sua capacidade de produção de armamento tradicional. Mas as linhas de produção só estarão operando em sua capacidade máxima no final do ano ou no início do ano que vem. Os russos sabem disso e por isso, agora, correm para conquistar posições estratégicas que lhe permitam uma grande ofensiva no Donbass. A próxima grande batalha já está definida. Será na pequena cidade de Chasiv Yar, onde Litlle Boy e seus colegas estão instalados.

Localizada em uma das poucas colinas destas vastas planícies, Chasiv Yar é a base perfeita para que os russos consigam preparar um grande avanço contras as principais fortificações ucranianas no Donbass, como Konstiantynivka e Kramatorsk. Bombardeada dia e noite nestas últimas semanas, Chasiv Yar resiste por conta da incrível resiliência dos soldados ucranianos e das últimas reservas de munição. Até quando, ninguém sabe ao certo.

Fonte: O Globo

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