No front da Ucrânia, frustração silencia esperança na vitória contra a Rússia

Monya (nome de guerra) de 43 anos, passou os últimos dois anos na linha de frente e teve apenas uma folga
Monya (nome de guerra) de 43 anos, passou os últimos dois anos na linha de frente e teve apenas uma folga — Foto: Yan Boechat

Monya carrega no olhar o peso e o horror de batalhas perdidas. O azul dos olhos pequenos se acinzenta quando tenta evitar as lágrimas. Ele se enche de vergonha, esconde o rosto, termina abruptamente o que queria dizer, até se recompor. Não consegue esconder a raiva nem pela derrota, nem pelo choro.

— Nós demos tudo o que podíamos, acredite, mas não conseguimos. Deixei meu coração lá, deixei tudo lá — contava ele num dia ensolarado e frio na estação de Pokrovsk, no extremo leste da Ucrânia, a poucos quilômetros das forças russas que avançam de forma lenta, porém gradual, nas vastas planícies que circundam o Rio Don.

Monya tem 43 anos e passou os últimos dois em Avdiivka, uma pequena cidade na região do Donbass, que os ucranianos acreditavam ser uma fortaleza inexpugnável. Sede de uma das maiores siderúrgicas da Europa, Avdiivka foi alvo de batalhas por uma década, desde os primeiros combates entre as forças rebeldes apoiadas pela Rússia, em 2014, até fevereiro deste ano, quando foi tomada após um avanço rápido das tropas russas e uma retirada caótica dos ucranianos.

Monya deixou o coração em Adviivka, mas escapou vivo. Naquela tarde fria em Pokrovsk, estava indo para casa, no centro da Ucrânia. Desde que a invasão russa começara, em fevereiro de 2022, teve o direito de ver a família por apenas dez dias. Agora, uma vez mais, voltaria a ver a mulher, a mãe e os dois filhos por outra semana e meia. Quando as lágrimas secaram, perguntei a Monya se não estava cansado após tanto tempo no front. Ele se calou.

Monya é, de certa forma, o retrato dos soldados ucranianos que estão combatendo a Rússia desde que o vizinho invadiu o país. São homens envelhecidos, esgotados e, agora, experientes em combates brutais que, quase sempre, terminaram em derrota. A idade média das tropas ucranianas neste momento é de exatos 43 anos, e poucos dos que estão no front tiveram mais de 20 dias de folga nestes mais de dois anos extremamente duros para a Ucrânia.

Não se sabe ao certo quantos pereceram. Oficialmente, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, admite que 31 mil homens perderam a vida desde a invasão russa — número bastante aquém das estimativas consideradas conservadoras do governo americano de que mais de 100 mil teriam morrido nos campos de batalha.

Com a crescente escassez de soldados nas áreas de combate, o governo ucraniano alterou neste mês a idade mínima para o alistamento obrigatório, de 27 para 25 anos. Idades consideradas ainda extremamente altas para os padrões internacionais de nações em guerra. Em todo o país, em especial em áreas de fronteira, funcionários do governo ampliam a fiscalização na tentativa de reduzir o número dos que buscam escapar da mobilização em um conflito que vem se mostrando incapaz de parar o avanço russo.

Enquanto em grandes cidades como Kiev, Lviv e Odessa a vida segue seu ritmo com um misto de incertezas e medo, nas áreas de combate, um manto de pessimismo e cansaço parece ter caído de forma abrupta sobre os soldados ucranianos após a derrota de Avdiivka. O espírito de otimismo que se seguiu às reconquistas de territórios ocupados pelos russos no primeiro ano de guerra desapareceu. As esperanças de que uma ofensiva sustentada pelo poderio militar das armas tecnológicas americanas e da Otan (aliança militar liderada pelos EUA) se transformaram em frustração após sucessivos fracassos na segunda metade do ano passado.

— As coisas não estão boas… nossa moral, nosso psicológico, nada está bom neste momento — contava Bielorrusso, nome de guerra de um soldado que veio de uma pequena cidade na fronteira com o país vizinho. — Estamos sem munição, presos neste buraco o tempo todo, não há substituição para os que se foram, não é fácil.

Até pouco tempo atrás, era raro encontrar um soldado falando tão abertamente das dificuldades enfrentadas na guerra. Nas conversas superficiais que repórteres e soldados mantinham sob o escrutínio de funcionários do governo em visitas próximas ao front, em geral havia um misto de bravata, hiperpatriotismo e confiança exacerbada.

Agora, tudo parece diferente. Bielorrusso estava em uma posição de artilharia na área rural de Kupiansk, um importante entroncamento ferroviário que liga o sul da Rússia ao norte do Donbass. Desde a metade do ano passado, as tropas russas têm renovado os ataques na tentativa de tomar a cidade. Estávamos no bunker, espremidos nas camas e nos banquinhos de madeira.

— Passamos a maior parte do tempo aqui, esperando ordens para disparar. Elas são mais escassas, e está cada vez mais perigoso ficar lá fora por que eles têm muito mais drones e muito mais munição do que temos — me dizia em frente ao funcionário de imprensa que obrigatoriamente acompanha jornalistas em áreas próximas ao front.

Bielorrusso e os outros quatro soldados que operam um canhão de 122 milímetros passam 10 dias no front e têm um dia de folga em uma casa na retaguarda que serve como base para sua equipe, onde ele pode tomar banho, ter alguma privacidade e não estar atento ao rádio 24 horas por dia. Ele, como Monya, só visitou a família duas vezes desde o início da guerra.

— Não há nada de bom aqui, não há nada de bom na guerra, quero voltar à minha vida quando tudo isso acabar — disse.

Bielorrusso tem 49 anos, e, assim como Monya, foi convocado e obrigado a ir para o front, ao contrário dos jovens que se voluntariaram para lutar assim que a guerra começou. Com pouca experiência, muito ímpeto, muitos morreram no início, como atestam os cemitérios repletos de novas sepulturas por todo o país. E, desde que a realidade da guerra se impôs, um número cada vez menor de jovens tem decidido ir para o combate por conta própria.

— No começo a gente via as postagens no Tik-Tok, a aventura, a camaradagem, a alegria — dizia Cadete, um soldado de 22 anos que lutou em Bakhmut e agora combate em Chasv Yar. — Mas ninguém nos conta dos gritos, a gente só descobre os gritos, o sangue, o medo quando chega aqui.

Cadete se preparava para um novo turno de três dias nas chamadas linha de contato, onde soldados ucranianos e russos disputam posições em combates quase homem a homem, sob intensa artilharia, e onde o risco de perder a vida é imensamente maior do que em uma posição de artilharia, em geral distante ao menos 10 quilômetros da linha de combate.

Cadete não gosta de falar sobre os amigos que perdeu, nem de contar como são as coisas onde a guerra acontece de forma intensa, o tempo todo. Seus olhos, como o de Monya, também carregam o peso da guerra. Nos despedimos no escuro, sob as luzes verdes que iluminam os equipamentos de visão noturna em um posto de gasolina abandonado, a poucos quilômetros de sua posição. Na noite sem lua vemos o tracejar dos disparos, os clarões das bombas explodindo no horizonte, e há o constante som da artilharia. Desejo boa sorte. Ele responde com um breve aceno de cabeça, em silêncio.

Fonte: O Globo

© 2024 Blog do Marcos Dantas. Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo deste site sem prévia autorização.