Medo, fome e uma baleia: como foram os 14 dias do nigeriano que veio ao Brasil escondido no leme de um navio

Roman Ebimene Friday, de 35 anos, nigeriano, conta que chegou ao Brasil com mais quatro no leme de um navio cargueiro
Roman Ebimene Friday, de 35 anos, nigeriano, conta que chegou ao Brasil com mais quatro no leme de um navio cargueiro — Foto: Edilson Dantas / O Globo

“Ebimene”, na lingua ijó, do sul da Nigéria, significa “bondade”. É também o nome de um jovem nigeriano que virou notícia no Brasil no início de julho, quando foi resgatado com três compatriotas no leme de um navio que chegou ao Porto de Vitória, no Espírito Santo: Roman Ebimene Friday, de 35 anos. Após partir em 27 de junho a bordo de um navio de carga de Lagos, foram 14 dias de uma viagem tão arriscada quanto improvável, mas que terminou bem-sucedida — embora o destino almejado pelos quatro fosse, na verdade, a Europa.

“Nasci em Bayelsa State, no sul da Nigéria. A história da minha chegada ao Brasil começa na verdade em janeiro, quando tentei sair pela primeira vez do meu país. Também de navio. Mas fui descoberto, e fiquei preso por cinco meses. Foi um período muito difícil. E eu só pensava que tinha que tentar de novo. Não tem trabalho, não tem nada para mim na Nigéria. Minha família é humilde. A insegurança é tremenda. Há terrorismo.”

Os quatro não se conheciam até entrarem no graneleiro Ken Wave, de bandeira da Libéria. Uma vez ali, assumiram um trabalho em equipe pela sobrevivência. No espaço de cerca de três metros de comprimento por três de largura, à beira da água, revezavam-se para dormir, comer e observar a rota. No décimo dia, ficaram sem água e comida.

País mais populoso da África, a Nigéria vive uma crise econômica, política, de insegurança alimentar e violência, com as ações do grupo radical Boko Haram. Cerca de dez mil nigerianos vivem no Brasil, segundo a Comunidade Unificada Nigeriana no país.

Resgatados por agentes da Polícia Federal na aproximação do navio ao Porto de Vitória, o grupo se dividiu pela primeira vez. Dois optaram por voltar à Nigéria. Os outros dois resolveram ficar e pedir refúgio no Brasil. No fim de julho, deixaram Vitória em direção a São Paulo, onde lhes disseram que possivelmente teriam mais oportunidades de recomeçar. Desde então, estão na Missão Paz, que engloba a Casa do Migrante e várias iniciativas de acolhimento e capacitação de refugiados no Centro da capital paulista. Tiraram documentos, frequentam aulas de português. Ainda em busca de trabalho, Ebimene espera ter encontrado, enfim, um lugar em que se ancorar.

“Meu sonho era a Europa. Londres. Ir de avião não era uma opção, não tenho dinheiro para a passagem. Somos cinco irmãos, eu sou o mais velho, minha mãe e minha avó. Estão todos na Nigéria. Não contei a eles o que iria fazer porque sei que iriam me desencorajar. Então disse a eles apenas que iria viajar.

Conheci um pescador perto do porto e ele disse que me ajudaria. Combinamos que eu iria com ele quando ele fosse pescar e que ele me ajudaria a entrar no navio. Era 27 de junho. Ele não cobrou nada, não paguei nada. Ele foi meu super-herói. Não sei se ele sabe que eu cheguei aqui, não tenho o contato dele. Mas eu sei que ele foi meu super-herói.

Nunca passou pela minha cabeça que seria o Brasil. Não sabia muito sobre o Brasil.

Éramos quatro no leme. Não os conhecia de antes, não sabíamos nem os nomes uns dos outros. Mas, uma vez ali, nos cuidávamos. E nos revezávamos naquele espaço. Uns ficavam sentados no leme, enquanto os outros dormiam dentro da caixa de máquina. Não era tão pequeno, mas não dava para esticar muito as pernas. Ninguém da tripulação sabia que estávamos ali.

Nunca tinha vivido algo assim. Sabia que era perigoso. Não dava nem para ficar olhando muito para o mar, dava tontura, e havia o risco de cair na água, que estava muito perto. Eu preferia olhar para o céu. Não pensava muito na morte, mas tinha noção do risco. A única vez em que rezei foi no oitavo dia. O navio tinha parado de se movimentar. E eu sentia que tinha algo errado ali. Comecei a rezar muito. Chamei os outros e então perguntei os nomes deles pela primeira vez, um a um. Era para falar na oração. Eles não entenderam na hora. Mas eu fiquei lá, dizendo o nome um a um, pedindo a Deus que cuidasse de nós, que permitisse que chegássemos. Realmente temi naquele dia.

Dois dias depois, ficamos sem comida e sem água. Eu tinha levado biscoito, farinha, água e amendoim. Nenhum outro pertence. Mas já estávamos tão longe, tínhamos que chegar em algum lugar. E nos manter vivos até lá.

A essa altura já estávamos muito fracos. Um dia, estava sentado no leme e vi um animal grande passar do meu lado. Comecei a gritar para os outros. Primeiro achavam que era um golfinho morto. Nada. Era uma baleia que passava do nosso lado. O mar é impressionante. As águas mudam de repente, de mais calmas a agitadas. Havia muito barulho do motor. Eu pensava em Deus e pedia que nos protegesse.

Para me distrair, eu tentava olhar a natureza. As montanhas. Achei que estava delirando quando comecei a ver montanhas. Gritei para os outros: “Montanhas! Montanhas!”. “Você tem certeza?”, perguntaram. Sim. Eu não tinha percebido, mas um bote vinha se aproximando. Eu que estava sentando na ponta do leme naquela hora. Perguntaram se falávamos inglês, quantos éramos. Eu respondi: “quatro”. Queriam saber se tínhamos comida ou água. Eu disse que não mais. A verdade é que já estávamos há quatro dias sem nada. Eles saíram, depois voltaram com mantimentos. E enfim nos resgataram. Era 10 de julho de manhã.

A primeira coisa que fiz foi perguntar a eles onde estávamos. Quando responderam “Brasil”, tomei um susto. Perguntei de novo. De novo. E mais uma vez. Tive que perguntar quatro vezes porque a ficha não caía. A primeira palavra que me veio à mente foi o (jogador) Kaká. Depois Ronaldinho, Rivaldo. Não fiquei desapontado por ter chegado ao Brasil. Só que realmente não esperava. E fiquei feliz. Me sentia tão fraco que mal conseguia falar. Acho que tomei uns dez litros de água de uma vez.

Ficamos uns dias em Vitória. Dois dos que estavam conosco resolveram que iriam voltar para a Nigéria. Eu e o outro decidimos que ficaríamos aqui. Para que voltar? Liguei para minha avó e demorou para ela acreditar que eu estava no Brasil. Alguns achavam que eu tinha sido preso novamente. Quero mandar dinheiro para minha família. E um dia estar com eles de novo. Nos falamos sempre. Minha mãe disse estes dias que não está bem. Penso nos meus irmãos, principalmente no menor. Ele é meu amanhã.

Viemos a São Paulo porque disseram que teríamos mais chances aqui. Em Vitoria, não havia muitas pessoas que falassem inglês. As pessoas têm sido receptivas, amigáveis. São Paulo parece interessante. Achei só que fosse encontrar mais negros. Não sabia que havia tantos brancos no Brasil. Sempre ouvíamos que o Brasil era como a África. Estou muito agradecido de estar aqui, na Missão Paz. Padre Paolo [coordenador da Missão Paz] é como um pai. Já tenho meus documentos brasileiros, estou fazendo aula de português. É mais difícil que falar ijó, e olha que ijó é difícil.

Conheci algumas pessoas, converso. Quando não quero papo, coloco meu fone. Gosto de hip-hop. Ainda falta conseguir trabalho. Na Nigéria eu era soldador. Fiz alguns bicos em construção, mas nada fixo. A relação com os brasileiros é muito boa. É verdade que não era o destino que buscava inicialmente, mas hoje encaro como uma dádiva. É onde quero estar. E onde espero ter um futuro melhor.”

Depoimento dado à repórter Elisa Martins.

Fonte: O Globo

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