‘Me sinto açoitada’: Justiça nega indenização por danos morais a cuidadora que denunciou empresa que rejeitou ‘negras e gordas’

'Não podem ser negras e gordas', dizia oferta de emprego de empresa em MG
'Não podem ser negras e gordas', dizia oferta de emprego de empresa em MG — Foto: Reprodução

“A sensação é de impotência. Estou me sentindo açoitada, como se tivesse voltado para o tronco”. O forte desabafo é da mineira Eliangela Carlos Lopes, de 46 anos. Cuidadora de idosos, ela participava de um grupo de WhatsApp com ofertas de emprego, em 2019, quando acabou surpreendida pela proposta de uma empresa que exigia que as candidatas não fossem negras ou gordas. Decidiu denunciar o caso, que gerou revolta e repercutiu em todo o país. Cinco anos depois, no entanto, diz que ainda espera uma punição exemplar aos envolvidos.

Depois de ver o processo criminal ser arquivado, em 2022, Eliangela agora ficou sabendo pelos advogados, nesta quarta-feira (6), que a Justiça decidiu rejeitar um pedido de indenização por danos morais movido por ela que corria contra os representantes da Home Angels Centro-Sul, responsáveis pela mensagem racista. A reportagem teve acesso à decisão. Nela, o juiz substituto Geraldo David Camargo, da 29ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte (MG), diz entender que “o fato é grave, discriminatório, odioso e ilegal”, mas argumenta que o dano é coletivo e não pessoal.

“(…) não há nos autos prova do dano direto e pessoal entre o print postado por (autora da mensagem) e o prejuízo sofrido pela autora, que seria a preterição ao serviço oferecido e por ser gorda ou negra, não pode ser contratada”, discorre o magistrado.

— Tudo o que denunciei até agora foi negado (pela Justiça). Ontem saiu essa sentença e a alegação do juiz me deixou indignada. Ele cita no processo que eu não me candidatei à vaga, mas eu fazia parte daquela linha de transmissão, recebi a mensagem no meu celular — reage Eliangela. — A sensação é de impotência. Quando a advogada me passou a decisão, eu tive vontade de tirar a minha própria vida. São anos lidando com isso, estudando e me informando sobre tudo isso, e agora me sinto açoitada, como se tivesse voltado para o tronco. Impotente, fragilizada e com medo, entendendo que a Justiça não é válida para mim.

A mulher diz se sentir revitimizada. O processo por danos morais está em trânsito e julgado.

— Eu não vou deixar de me mover, de correr atrás, vou esgotar todas as minhas energias e da minha advogada, mas a certeza que eu tenho é de que a lei não prevalece para os pobres e pretos. As coisas que foram encontradas no celular da empresa, as coisas que eram ditas por eles… se um juiz tem alma, não tinha como ele relevar isso. Não é questão financeira, indenizatória, que vale para mim, mas de honra. O que mais me dói é que era uma lista de transmissão com mais de 100 pessoas, eu fui a única que tive coragem de denunciar e ainda fico exposta agora, porque mobilizei polícia, mídia, tudo para tornar visível, e o que deu? Em nada.

Depois que o caso veio à tona, Eliangela continuou trabalhando como cuidadora de idosos. Segue até hoje. Mas também passou a ser convidada para palestras, se tornou escritora e concluiu formação de bombeira-civil. Mesmo assim, sente ainda o peso de toda a repercussão sobre o que aconteceu.

— Tive problemas sérios emocionais. Desencadeou ansiedade, medo, comecei a ser reconhecida como a cuidadora que “fez a denúncia que não deu em nada”. Claro, me tornei escritora também, palestrante, me formei como bombeiro-civil, tive outras oportunidades, mas como mulher preta, estou me sentindo ninguém. Essa é a sensação — desabafa.

Em 2019, no ano em que a denúncia veio à tona, a 3ª Delegacia de Polícia Civil de MG, de Ribeirão das Neves, indiciou no âmbito da lei do crime racial, por negar ou obstar emprego em empresa privada, a responsável pela empresa, uma funcionária de recursos humanos e a mulher que compartilhou a vaga de emprego com as exigências racistas. A pena consistiu no pagamento de uma multa.

Pessoal!!!! A home angels centro sul me Ligou agora requisitando 10 folguistas para trabalhar como plantonistas…

Eles pagam 100,00 por plantão com VT incluso.

Únicas exigências:

Não podem ser negras, gordas e precisam de pelo menos 3 meses de experiência.

Preciso de 5 cuidadoras com disponibilidade para trabalhar de dia e 5 cuidadoras com disponibilidade pra Trabalhar à noite! Quem aí tem interesse?! Entrevista hoje as 15 na rua tupis no centro!

Em seguida, Eliangela se sente ofendida e questiona: Mas que tamanho preconceito. Não pode ser negra nem gorda? Estou chocada”. A mulher que compartilhou a proposta, então, responde: “Exigência deles, não minha! Não posso fazer nada!”.

Ao abrir o inquérito, a Polícia Civil ainda descobriu que a prática de racismo era frequente internamente naquela filial da empresa. Um diálogo extraído de um dos aparelhos celulares da firma mostra uma mensagem da responsável pela empresa o seguinte conteúdo:

“NÃO CONTRATAR MAIS: func (funcionários) de cabelos dread/black power ou do gênero, funcionárias negras azuis (…) Nossos clientes são mega exigentes, e dps que elas entram na empresa não temos mais o que fazer, a não ser ver os nomes delas no quadro como A DISPOSIÇÃO, pq não tenho $$$ pra demitir essa qt de gente”.

Num áudio, as mulheres também se referem a uma candidata a uma vaga como “gorila” e diz que “libera negra até certo ponto, de cabelo escovado”.

A reportagem procurou a empresa Home Angels em busca de um posicionamento, mas não houve resposta. Procurados, Ministério Público de Minas Gerais e Polícia Civil também ainda não se manifestaram sobre o andamento de possíveis investigações.

Em 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 14.532, que tipifica como crime de racismo a injúria racial, com a pena aumentada de um a três anos para de dois a cinco anos de reclusão. Enquanto o racismo é entendido como um crime contra a coletividade, a injúria é direcionada ao indivíduo.

O Senado Federal explica que, embora desde 1989 a Lei 7.716 (Lei de Crime Racial) tenha tipificado crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, a injúria continuava tipificada apenas no Código Penal.

Assim, a pena de um a três anos de reclusão continua para a injúria relacionada à religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência, aumentando-se para dois a cinco anos nos casos relacionados a raça, cor, etnia ou procedência nacional.

A lei prevê ainda que todos os crimes previstos na Lei 7.716 terão as penas aumentadas em um terço até a metade quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação.

Em relação ao crime de injúria, com ofensa da dignidade ou decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional, a pena é aumentada da metade se o crime for cometido por duas ou mais pessoas. 

Quando o crime de injúria racial ou por origem da pessoa for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, a pena será aumentada em um terço.

O agravante será aplicado também em relação a outros dois crimes tipificados na Lei 7.716:

Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional: reclusão de um a três anos e multa;

Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada para fins de divulgação do nazismo: reclusão de dois a cinco anos e multa.

Fonte: O Globo

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