Marco temporal: divergência no STF sobre indenizações pode abrir margem para novas judicializações

Plenário do STF durante julgamento do marco temporal
Plenário do STF durante julgamento do marco temporal — Foto: Nelson Jr./STF

Com quatro votos contrários à tese do marco temporal, o Supremo Tribunal Federal (STF) poderá ter de lidar com outra questão que gerou divergências entre ministros durante o julgamento: se atuais ocupantes de terras que venham a ser consideradas territórios indígenas devem ou não ser indenizados.

O julgamento será retomado nesta quarta-feira com o voto do ministro Dias Toffoli e a discussão em torno das indenizações já é vista como uma possibilidade de nova judicialização. Ministros, no entanto, alertam que é preciso aguardar até o final do julgamento para saber como a questão será resolvida.

Até o momento, quatro dos seis ministros que já votaram foram contrários à tese do marco temporal: Edson Fachin, que é o relator do caso, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso. Entre eles, há divergência sobre como estas compensações aos detentores de terras originalmente indígenas poderiam ocorrer.

Alexandre de Moraes: indenização a todos que ocuparam de ‘boa-fé’

O primeiro ministro a levantar a possibilidade de indenizações foi Alexandre de Moraes, ainda em junho, em um voto “médio”. Apesar de se opor à tese do marco temporal, ele afirma que proprietários rurais que ocuparam as áreas “boa fé” poderiam receber indenização prévia do Estado pela terra nua, diante da desapropriação para demarcação das terras indígenas.

Edson Fachin: compensação apenas por benfeitorias

Fachin, que é o relator, além de votar contra o marco temporal se posicionou de maneira contrária às compensações a atuais ocupantes de terras. Segundo ele, eventual perda da posse de “boa-fé” (quando não há uma irregulidade clara, como grilagem) pode ser resolvida mediante o pagamento do valor referente apenas às benfeitorias e a inserção prioritária em programas de assentamento pelo órgão fundiário federal, conforme previsto em lei.

Cristiano Zanin: estados também devem pagar

Ao votar contra o marco temporal, Cristiano Zanin reconheceu o direito à indenização das benfeitorias decorrentes das ocupações de terras indígenas feitas de boa-fé, mas defendeu a necessidade de também indenizar o valor da terra nua, se for comprovada a aquisição de boa-fé.

De acordo com Zanin, nesses casos, a responsabilidade civil não deve ficar restrita à União, mas também aos estados que tenham causado danos decorrentes de titulação indevida.

Luís Roberto Barroso: União deve indenizar sem atrapalhar demarcações

Barroso acompanhou o relator na tese contrária ao marco temporal, afirmando que a tradicionalidade e persistência na reinvindicação são fundamentais para o direito dos indígenas sobre seus territórios e afirmou que seguiria a tese de Zanin sobre eventuais compensações.

Para o vice-presidente do STF, contudo, cabe indenização por ato ilícito da União que doou ou vendeu terras que não eram suas. O pagamento deve ser feito de forma direta, sem uso de precatórios, e sem direito de retenção, pois isso impossibilitaria a demarcação de terra indígena.

O que diz a AGU?

A Advocacia-Geral da União (AGU) afirmou, em documento enviado a ministros do STF, que a indenização prévia a quem ocupou terras indígenas geraria um “gasto incalculável” e poderia atrasar o processo de destinação do território, uma vez que ele só seria finalizado quando houvesse o pagamento.

O órgão considera que, caso haja indenização, ela seria paga pelo ente público “que, de modo irregular, tenha criado, por ações e omissões, a expectativa no particular” de que a propriedade seria sua. Esse ente não necessariamente seria a União, podendo ser um poder local, como estados ou municípios. Além disso, a AGU defende que “a indenização deve ser limitada ao pagamento da terra nua, sujeita à prescrição quinquenal e destinada somente aos adquirentes de boa fé”.

O que dizem entidades indígenas e especialistas?

A tese levantada por Moraes sobre a necessidade de indenizações foi considerada “desastrosa” pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que considera que o entendimento pode inviabilizar a demarcação dos territórios.

“É possível que existam pequenos proprietários sobre a terra indígena, que não necessariamente estejam agindo de má fé. No entanto, a suposição do ministro ignora a vasta história de grilagem de terras no Brasil e a ação criminosa de ruralistas, que usam das mais diversas ilegalidades e da violência para tomar o que é de direito dos povos originários”, disse a entidade em comunicado sobre o voto de Moraes.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também criticou a proposta feita por Moraes por entender que a ideia da indenização prévia a proprietários é inconstitucional e acirrará conflitos.

“O voto do Ministro Alexandre de Moraes, justificando uma tentativa de conciliação de direitos, deixa de ser adequado constitucionalmente quando cria a possibilidade de indenização prévia pela terra nua a não indígenas e ao prever compensação de terras indígenas por outras equivalentes”, afirmou a entidade, que atua no caso como “amiga da Corte”.

Embora também tenha proposto o pagamento de indenizações aos ocupantes de boa-fé, a ideia levada a campo pelo ministro Cristiano Zanin encontrou melhor recepção por parte dos movimentos indígenas e também pelos órgãos do governo federal, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

O parecer afirma que, caso haja indenização, ela não pode ocorrer antes da demarcação, porque estaria sendo estabelecida uma condição a mais para a demarcação, que já estaria atrasada.

Em nota publicada após o término da última sessão do julgamento, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) avaliou como positiva a proposta sugerida por Zanin uma vez que “não impede a continuidade dos processos demarcatórios, sendo que a possível indenização deve ser avaliada caso a caso”.

“Segundo o ministro Zanin, não se pode fazer interpretação restritiva ao direito dos povos indígenas e até constituições anteriores a de 1988 já protegiam e reconheciam as terras tradicionalmente ocupadas e os hábitos dos povos originários. Para o ministro, a relação entre a terra e o indígena é congênita, originária”, ressalta a pasta.

Na avaliação da advogada Paloma Gomes, advogada do Povo Xokleng e assessora jurídica do Cimi, “sem sombra de dúvidas a melhor proposta no caso das indenizações” é de Zanin. Ela ressalta, contudo, que o caso concreto analisado pelo Supremo não verse sobre possíveis direitos de terceiros de boa-fé e eventuais indenizações.

— Como bem salientado pelo ministro Roberto Barroso, o que está em discussão hoje na Corte é se os títulos incidentes sobre terras indígenas se sobrepõem à posse tradicional indígena de território ainda não homologado. No caso concreto, a tese proposta pelo relator Edson Fachin é a mais adequada ao que previsto na Constituição Federal — aponta.

Em sentido oposto, o advogado Marcelo Levitinas, sócio do escritório Graça Couto, afirma que há inúmeras situações pelo país que geram, segundo ele, insegurança jurídica: projetos de geração e transmissão de energia, mineração, logística que são aprovados pelo Poder Público e, anos depois de implantados e operados, sofrem demandas de comunidades indígenas.

— Se a orientação do STF se fixar pelo dever do Estado de indenizar os proprietários de terras recebidas em boa-fé – esse é o objeto da atual discussão –, é provável, e justificável, que também os titulares dos mencionados projetos pretendam indenizações pelo impedimento superveniente de suas atividades (indenizações essas que tendem a ser muito mais substanciais) — pontua.

O processo que motivou a discussão trata da disputa pela posse da Terra Indígena (TI) Ibirama Lá-Klanô, localizada em Santa Catarina, e ocupada pelas comunidades Xokleng, Kaingang e Guarani. No próximo dia 20, a análise será retomada com o voto do ministro Luiz Fux. Além dele, restam votar os ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber.

Fonte: O Globo

© 2024 Blog do Marcos Dantas. Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo deste site sem prévia autorização.