Mapa 3D do universo com precisão inédita ajuda a desvendar energia misteriosa

Imagem mostra detalhe da distribuição de matéria no Universo mapeada em 3D pelo projeto Desi
Imagem mostra detalhe da distribuição de matéria no Universo mapeada em 3D pelo projeto Desi — Foto: ClaireLammanDESI

Um consórcio internacional que reuniu mais de 900 cientistas em 70 centros de pesquisa apresentou hoje o resultado do maior mapeamento tridimensional já feito para o Universo. O projeto tem como objetivo principal entender a energia escura, a força que acelera a expansão do cosmo. Essa entidade, revelam os novos dados, pode estar mudando de intensidade com o tempo.

A pesquisa foi realizada com um telescópio projetado especialmente para essa tarefa, o Dark Energy Spectroscopy Instrument (Desi), no Arizona. Com uma lente de abertura ampla e equipado com espectroscópios (instrumentos capazes de decompor com precisão as frequências de luz captada), o dispositivo conseguiu mapear com 99% de precisão a posição de galáxias e quasares, núcleos de galáxias hiper-brilhantes que podem ser vistos a distâncias enormes.

Os quasares e galáxias são úteis para mapear o Universo em 3D porque a luz que eles emitem é absorvida por nuvens de gás intergaláctico ao longo do caminho. O padrão de luz captado pelo telescópio, então, revela qual é a concentração de matéria ao longo da trajetória. Alguns dos 450 mil quasares que o DESI mapeou estão tão distantes que sua luz levou 11 bilhões de anos para viajar da origem até a Terra.

Essa distância é um marco importante porque significa que cientistas são capazes de contar com precisão uma parte significativa da história do cosmo, já que a explosão na gênese do Universo, o Big Bang, ocorreu há 13,8 bilhões de anos.

A distribuição de matéria revelada pelo Desi está descrita em uma série de artigos que os cientistas do projeto submeteram hoje ao portal Arxiv. Os trabalhos não passaram por revisão independente ainda, e a ideia é que os resultados sejam submetidos agora ao escrutínio da comunidade de cosmólogos e astrofísicos como um todo.

Os resultados do mapeamento, de maneira geral, estão de acordo com a teoria dominante hoje para explicar a expansão do cosmo. Conhecida pelos cientistas da área como Lambda CDM, ela tem como principais componentes duas grandes forças que regem a evolução do Universo.

Uma dessas forças, a gravidade, atua na direção contrária à expansão, porque é uma força atrativa. Da mesma forma que faz estrelas atraírem planetas para seu entorno, pode puxar galáxias para mais perto umas das outras, e faz aglomerados de galáxias se atraírem também.

A gravidade existente no cosmo, porém, não estaria só nas estrelas e galáxias visíveis, mas também em um volume imenso de “matéria escura fria” (cold dark matter, ou CDM), um tipo de partícula que não praticamente não interage com a matéria comum, mas possui gravidade. Na verdade, mais de 95% da gravidade existente no universo vem de matéria escura.

A outra componente importante da teoria vigente é a energia escura, representada pela letra grega Lambda em variáveis das equações dos cientistas. Mas essa outra força fundamental, ao contrário da gravidade, é repulsiva. Ela não é perceptível na “pequena” escala de planetas e estrelas, mas em escala cosmológica está fazendo a expansão do universo se acelerar e atua esgarçando o cosmo.

Um problema na compreensão da energia escura é que cientistas já entendem bem “como” ela está modificando o cosmo, mas não sabem ainda “o que” ela é. Existem diferentes teorias para tentar explicar sua natureza, e uma delas sugere que ela se trataria de uma “constante cosmológica”, uma propriedade inerente do cosmo que atuaria para impedir um colapso generalizado promovido pela gravidade.

O físico Albert Einstein concebeu a constante cosmológica há mais de um século, para depois abandoná-la. Ninguém sabe dizer até hoje se essa ideia é errada por princípio, mas um estudo mais detalhado da energia escura pode vir a revelar se ela se encaixa nesse modelo.

Um resultado importante dos primeiros estudos do Desi, revelados hoje no encontro da Sociedade Americana de Física, em Sacramento (Califórnia) é que algumas das observações diferem sutilmente daquilo que a teoria Lambda CDM, estava prevendo.

— Nossos resultados mostram alguns desvios do modelo padrão do Universo que podem indicar que a energia escura está evoluindo com o tempo — afirmou o astrofísico Mustapha Ishak-Boushaki, da Universidade do Texas em Dallas, um dos cientistas da colaboração, em entrevista coletiva.

Isso significa que, se energia escura está oscilando, ela não é uma constante. E se não é uma constante, ela não se encaixa na ideia básica de Einstein, e outras teorias candidatas, mais complexas, entram em cena. Apesar da grande precisão do Desi, contudo, o projeto não foi capaz ainda dar uma resposta definitiva para isso.

— Quanto mais dados colhemos, mais bem equipados estaremos para determinar se essa descoberta se sustenta — afirmou.

Um aspecto importante do projeto é que ele ajuda a entender o que aconteceu não apenas nos últimos 11 bilhões de anos, mas também antes disso. Mais perto do Big Bang, com a matéria e energia extremamente concentradas, as teorias indicam que só o que havia era um grande meio mais ou menos uniforme de átomos e partículas elementares que os cientistas conhecem como “bárions”. Essa é a matéria ordinária que conhecemos.

Se essa névoa de partículas do cosmo fosse perfeitamente uniforme, o crescimento do Universo a teria feito apenas perder densidade, ficando mais fina. Para surgirem estruturas como planetas, estrelas e galáxias, porém, é preciso que nos momentos inciais críticos de expansão do cosmo ela possuísse pequenas imperfeições, sendo mais densa em alguns lugares, menos densa em outros.

Essa variação de densidade num instante inicial, pelo que se sabe, criou ondas naquela névoa espessa de partículas e permitiu que o desequilíbrio de distribuição as permitisse se agregar. É por causa dessas “oscilações bariônicas”, em última instância, que a teoria diz que hoje existem corpos celestes bem definidos, e não apenas uma névoa rala e uniforme no Universo.

As oscilações bariônicas se propagaram em cada local do cosmo como se fossem ondas acústicas, e essas ondas acústicas, que determinaram como a matéria se espalhou no universo como bolhas. Verificar como essas bolhas são diferentes em cada momento da história do cosmo, em última instância, é o que vai revelar finalmente se a energia escura se comportou diferente em cada momento.

Atingir a precisão necessária para isso, porém, tem um custo. O Desi já está funcionando a há cinco anos e até agora consumiu cerca de US$ 70 milhões de dólares. O projeto ainda continua, e há planos para aprimoramentos numa segunda fase, ainda sem recursos garantidos.

O cosmólogo Michael Levi, do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, da Califórnia, lídero do Desi, deu sinais positivos hoje de que o projeto vai ter continuidade.

— Estamos extremamente orgulhosos dos dados apresentados hoje, que produziram os melhores resultados cosmológicos do mundo e são os primeiros a surgir da nova geração de experimentos de energia escura — disse o cientista.

Fonte: O Globo

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