Lula quer Brasil mais perto da África, onde diplomatas reclamam de difíceis condições de trabalho

Lula e o presidente do Egito, Abdel Fatah al-Sisi, durante reunião do palácio presidencial egípcio no Cairo.
Lula e o presidente do Egito, Abdel Fatah al-Sisi, durante reunião do palácio presidencial egípcio no Cairo. — Foto: Ricardo Stuckert/PR

Lula pretende ser uma espécie de “padrinho” da União Africana (UA) no G20, o bloco das 20 maiores economias do planeta que tem atualmente o Brasil na presidência. Não por acaso, ele começou suas viagens internacionais este ano pela África, onde o Brasil é visto como uma espécie de modelo, porque chegou aonde países africanos pretendem chegar. Depois de passar pelo Egito, onde desembarcou ontem, o presidente vai para a Etiópia, onde o principal compromisso será uma participação na cúpula da UA.

Uma ala africanista do Itamaraty com a qual O GLOBO conversou se diz otimista, principalmente depois de anos de afastamento entre Brasil e África, mas insiste que o presidente Lula deve “atualizar” o discurso sobre o continente ao rearticular as relações entre os dois lados do Atlântico. Uma ideia também defendida pela doutora em Ciências Políticas pela UERJ Renata Albuquerque Ribeiro.

— Claro que é fundamental reconhecer a contribuição dos africanos para a formação do Brasil, mas hoje acho que o discurso-base das relações do Brasil com a África poderia estar mais voltado para o futuro, para o potencial existente nessas relações a partir da análise do que o continente é hoje: um continente jovem, aberto a novas tecnologias, com um mercado consumidor gigantesco… — destacou.

Quem acompanha o assunto sente falta, desde o início deste terceiro mandato do presidente, de um planejamento estratégico, algo mais concreto, para lidar com o continente de 54 países e uma população de cerca de 1,4 bilhão de pessoas, que Lula prometeu priorizar. Ao voltar a flertar com a África, o governo tem planos de dimensões políticas e comerciais. Toda a costa atlântica africana é muito relevante para o Brasil, até mesmo pelo posicionamento geográfico.

Na viagem a Angola, no ano passado, Lula falou que empresas brasileiras devem voltar a investir no continente. A ideia do governo é que o presidente faça a abertura política, mas encontre espaços a serem ocupados pelo setor privado. A questão do financiamento a empresas brasileiras ainda está sendo estudada “de maneira bastante aprofundada pelos setores econômicos do governo” e é um ponto importante nessa discussão.

— Certos mecanismos que foram usados no passado, como financiamentos à exportação, não estão mais disponíveis como antes. Isso não significa que não haja uma estratégia — destacou uma fonte da Secretaria de África e Oriente Médio do Itamaraty, que preferiu não ser citado na reportagem.

A ideia de que 2024 é o ano da África para o Brasil não empolga todos os diplomatas brasileiros, principalmente alguns que vivem, no dia a dia, as dificuldades de se estar em postos com poucos recursos e sublotados. Para se ter uma ideia, o Brasil tem somente na França e na Suíça 94 diplomatas, enquanto 84 atuam em todo o continente africano, que conta atualmente com 33 embaixadas e dois consulados-gerais. Há 12 embaixadas brasileiras com apenas um diplomata, sendo 10 delas na África: Abuja (Nigéria), Brazzaville (Congo), Cotonou (Benin), Harare (Zimbábue), Iaundê (Camarões), Kinshasa (República Democrática do Congo), Libreville (Gabão), Lomé (Togo), Malabo (Guiné Equatorial), Uagadugu (República Centro-Africana); as outras duas são em Islamabad (Paquistão) e Daca (Bangladesh).

— Onde é que fica a tal politica para a África se você não dá condições materiais para pessoas executarem a politica do presidente? Queremos isso, é nossa obrigação, mas como vai ficar isso se a gente não tem pessoal? — questionou o presidente da Associação e Sindicato dos Diplomatas Brasileiros (ADB), Arthur Nogueira, que também é embaixador na Zâmbia.

Segundo levantamento da ADB, com dados até janeiro, o Brasil tem 233 postos no exterior, entre embaixadas, missões, escritórios e consulados. Das 1.115 vagas fora do Brasil, 920 estão ocupadas. Basicamente, nos postos brasileiros que ficam nos EUA e na Europa Ocidental, em média, 95% das vagas estão preenchidas, enquanto em embaixadas africanas, a média é de 60%. O Itamaraty disse que não se manifestaria para esta reportagem.

Recentemente, vagas foram cortadas, sobretudo em postos considerados importantes para a política externa brasileira. O presidente da ADB achou a medida muito positiva, mas diz que, no caso de postos na África, o certo seria preencher vagas desocupadas em vez de serem eliminadas.

As relações entre o sindicato dos diplomatas e a direção do Itamaraty não andam boas, inclusive por conta de outra recente decisão do ministério determinando que, até o meio do ano, diplomatas que estão no exterior há mais de seis anos voltem para Brasília. O motivo é, basicamente, a organização de três eventos, este ano e no ano que vem, que acontecerão no Brasil e são considerados estratégicos para o governo: as cúpulas do G20 e do Brics e a COP30.

Estima-se que essa determinação prejudique diretamente embaixadas na África. É que normalmente diplomatas no início da carreira são mandados primeiro para países considerados mais importantes para o Itamaraty, que usa quatro letras para classificar os postos no exterior: A e B, mais bem estruturados, além de C e D, como são identificados todos os do continente africano.

Pela Lei do Serviço Exterior, o diplomata pode ficar até seis anos fora do Brasil. Este período pode chegar a 10 anos, mas desde que ele trabalhe por mais quatro anos em postos C e D. Ou seja: boa parte dos diplomatas no continente africano já está fora do país há mais de seis anos e deve ter que voltar para Brasília em breve.

— Quem decide é Brasília, é legítimo, mas o incomodo é que foi feito sem nenhum aviso prévio, a regra do jogo mudou durante o jogo — desabafou um diplomata que tem filhos pequenos e atualmente trabalha em um país africano.

O presidente do Sindicato dos Diplomatas mandou, dia 19 de janeiro, uma carta ao chanceler Mauro Vieira pedindo uma reunião para tratar do assunto, mas disse que não teve resposta até hoje. Cerca de 30% do corpo diplomático brasileiro estão no Brasil. Para o sindicato, muitos deles poderiam ser direcionados para a organização dos três eventos, gerando menos custo e sem desfalcar ainda mais embaixadas brasileiras na África.

Ao tomar posse para seu terceiro mandato, Lula voltou a dar mais espaço no Itamaraty ao Departamento de África, ao contrário de Jair Bolsonaro. O ex-presidente nunca fez uma visita oficial ao continente e enquanto ocupou o Planalto fechou embaixadas em três países africanos: Malauí, Libéria e Serra Leoa (esta última será reaberta por Lula). No fim do ano passado, o Itamaraty anunciou também que Lula vai abrir uma embaixada em Ruanda e um consulado-geral em Angola. Entre 2002 e 2020, o Brasil abriu 18 embaixadas no continente africano, além do consulado-geral de Lagos, quando a embaixada na Nigéria passou para a cidade de Abuja.

— O objetivo político é louvável, mas a abertura de novas embaixadas tem que ser feita dentro de um plano maior para que as outras não sejam prejudicadas — observou um diplomata brasileiro na África que afirmou ainda haver um estigma no Itamaraty que afasta diplomatas de postos aqui. — É uma cultura lamentável. Tem colega que diz aos mais jovens que, se vierem pra cá, a carreira não deslancha — disse ele, que, assim como outros, prefere não se identificar.

A doutora em Ciências Políticas pela UERJ Renata Albuquerque Ribeiro lembra que usualmente os postos no continente africano são vistos como “de menor prestígio”, o que é um reflexo do desinteresse e até uma certa deslegitimação do continente africano como relevante para as relações internacionais do Brasil.

— É algo presente na história da política externa brasileira para o continente. Falta uma política externa estruturada para a África, que ajude a diminuir essa visão negativa de muitos representantes da carreira diplomática — concluiu.

Fonte: O Globo

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