Linhas cruzadas nos telefonemas de Biden

Presidente Joe Biden lida com desafios estratégicos da política externa dos EUA
Presidente Joe Biden lida com desafios estratégicos da política externa dos EUA — Foto: Chip Somodevilla/Getty Images North America/Getty Images via AFP

Em ano de eleição presidencial nos EUA, cada passo de Joe Biden está sendo calculado com um olho em novembro, quando os americanos irão às urnas para decidir se ele deve continuar na Casa Branca ou fazer as malas e dar espaço para a volta de Donald Trump. Nesta semana, Biden conversou com líderes de dois países que ocupam boa parte da agenda diplomática dos EUA e podem ter reflexos nos rumos da campanha, China e Israel. O resultado, guiado por circunstâncias inesperadas, foi de linhas cruzadas.

Com a China, maior rival geopolítico e competidor econômico dos EUA, a conversa foi cordial, indicando o interesse de ambos os lados de preservar a relativa estabilidade dos últimos meses. Enquanto isso, com Israel, principal aliado americano no Oriente Médio, o telefonema foi claramente tenso, marcado por demandas e a advertência de que o apoio dos EUA não é infinito nem incondicional. As duas conversas indicam desafios de naturezas distintas para Biden e sua equipe de política externa, mas que se cruzam.

Seis meses após o início da guerra na Faixa de Gaza, o governo americano está fechando o guarda-chuva diplomático que ofereceu a Israel para continuar suas operações militares contra o grupo terrorista Hamas. Primeiro, permitiu a aprovação no Conselho de Segurança de uma resolução que demanda um cessar-fogo imediato, depois de ter vetado outras três com o mesmo objetivo. Agora, intensifica a pressão sobre o tradicional aliado.

Na conversa por telefone desta quinta com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, Biden reiterou a urgência em que Israel aceite o cessar-fogo e tome outras medidas para aliviar a grave crise humanitária em Gaza. O que mais chama a atenção na transcrição da conversa divulgada pela Casa Branca é que nela praticamente só há demandas; a única demonstração de apoio é contra a ameaça iraniana a Israel. Até na menção aos reféns israelenses mantidos pelo Hamas há um aperto americano, para que Netanyahu “conclua um acordo sem demora”, que permita trazê-los de volta. É algo, aliás, que a maioria dos israelenses também espera de seu governo.

Sem ter alcançado seus objetivos principais, que eram destruir a capacidade do Hamas de governar Gaza e resgatar os reféns, Israel está encurralado entre uma guerra em que não pode obter a vitória total prometida pelo governo e os interesses políticos de Netanyahu, que depende do apoio de um gabinete composto por radicais para se manter no poder. Enquanto isso, virou um aliado tóxico para Biden, que vê a tragédia humanitária em Gaza corroer suas chances de reeleição. O impasse em Gaza parece aproximar o presidente americano da conclusão de que é preciso sacrificar o apoio incondicional a Israel para não perder em novembro.

Já com a China, que num enfoque estratégico mais amplo deveria ser o principal tema de política externa da campanha, a meta continua sendo a mesma: contenção. A médio prazo, contudo, tanto Washington como Pequim têm demonstrado interesse em evitar uma deterioração. Na conversa que Biden teve na terça com o presidente chinês, Xi Jinping, foram mencionados os temas que geram tensão na relação bilateral, como Taiwan, Ucrânia e disputas comerciais. No fim das contas, porém, ambos os lados mostraram disposição em manter canais de diálogo abertos, um avanço em relação à ruptura dos anos Trump.

Ainda assim, há dúvidas sobre a preferência de Pequim na corrida presidencial americana. Seria natural supor que o governo chinês queira levar adiante a distensão obtida com o governo Biden. Outros acham que a volta do imprevisível Trump é um desejo acalentado secretamente pela liderança em Pequim, tanto pelo desgaste que ele causa à imagem dos EUA como por considerarem que o egocentrismo do republicano se casa melhor com o estilo chinês. A cúpula chinesa prefere lidar “por meio de relações pessoais e recompensas financeiras” com dirigentes centralizadores (como Trump) do que com com governos “preocupados com leis e regras impessoais” (como o de Biden), diz James Mann, autor de três livros sobre as relações sino-americanas, em artigo no “LA Times”.

A relação com a China continua sendo de “competição intensa”, conforme descreveu antes da conversa Xi-Biden um assessor do governo americano. É uma corrida de longa distância, que dominará por muito tempo não só a estratégia diplomática dos dois países, mas o contorno geopolítico mundial. No longo prazo, o objetivo declarado é conter a China. Mas o prolongamento do impasse em Gaza impôs aos EUA prioridades mais urgentes: frear a crise humanitária no território palestino, conter os danos políticos do apoio americano a Israel e enquadrar Netanyahu num desfecho possível para a guerra, que evite a deflagração de um conflito de proporções regionais.

Fonte: O Globo

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