‘Líder tribal’, ‘Cristóvão Colombo II’ e obsessões: quem é brasileiro que viveu por cinco anos em hotel em NY por US$ 200

Mickey Barreto foi despejado após ocupar quarto de hotel legamente desde 2018
Mickey Barreto foi despejado após ocupar quarto de hotel legamente desde 2018 — Foto: Reprodução/Redes sociais e John Taggart/The New York Times

Mickey Barreto, Miguel Abraão Muniz Barreto e Cistóvão Colombo II são os nomes usados pelo brasileiro que morou, durante cinco anos, em um hotel em Nova York, nos Estados Unidos, por US$ 200,57 (ou cerca de R$ 1.000). O homem, que se diz fundador de uma tribo e descendente de Cristóvão Colombo, usou lei local obscura dos anos 1960 para forjar seu nome em escritura do edifício New Yorker, cujo dono é a Igreja do falecido Reverendo Moon.

Em suas redes sociais, Barreto se descreve como: “líder tribal e religioso. Um homem de negócios para o benefício de toda a humanidade”. No entanto, segundo familiares, suas aptidões — e obsessões — vão muito além de sua descrição na internet.

Nascido em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, Mickey Barreto, de acordo com parentes, foi destaque na escola, nunca teve problemas e se mudou para os Estados Unidos na década de 1990. Quando adolescente, era considerado particularmente talentoso – o filho mais inteligente da família. Mas nos últimos anos, desenvolveu obsessão por sua genealogia. Alegara ter descoberto ligação direta com Cristóvão Colombo, e através da realeza portuguesa. Na Justiça, passou a invocar o nome do explorador — “Meu sobrenome é ‘Muniz Barreto Colombo’”, escreveu em um processo de 2021.

Ainda no mesmo ano, o brasileiro escreveu um livro, dividido em dois volumes, que nomeou de “O Código Columbiano”, no qual se autodenomina “Cristóvão Colombo II”. No material, que ele descreve como um compilado de documentos relacionados ao continente americano, além de se denominar herdeiro do navegador espanhol, ele se diz chefe de uma tribo, a “Linda Nação da Lua e do Sol” (The Bautiful Nation of the Moon and of the Sun).

Além de sua obsessão pela árvore genealógica, Mickey Barreto também se diz proprietário e presidente de uma ONG, a “Mickey Barreto Missions”, que o brasileiro diz liderar ao lado de Korey Cook, que atuaria como chefe financeiro e coordenador de projetos.

Segundo o site da empresa, a MBM seria uma organização sem fins lucrativos que se dedica a criar formas de autossuficiência para moradores de rua e indivíduos que sofrem de abuso de substâncias. Ainda de acordo com a plataforma da ONG, o objetivo do projeto seria proporcionando um local de moradia, programas de procura de emprego, assistência com tratamentos e acompanhamento para saúde mental.

A maior parte do hotel onde Mickey Barreto viveu por cinco anos é hoje ocupada por seguidores do Reverendo Moon, o autoproclamado messias que comprou o hotel em 1976 e o ​​transformou em sede de sua organização e que morreu em 2012.

Além de sua obsessão por seu suposto antepassado Cristóvão Colombo, o brasileiro também decidiu investigar as origens da Igreja da Unificação na Península Coreana, seus interesses econômicos em expansão em outros continentes e ligações comerciais com o governo da Coreia do Norte. E passou a acreditar que os líderes da Igreja estavam enviando seus rendimentos, incluindo os provenientes do hotel, para a Coreia do Norte, violando assim as sanções impostas pelos Estados Unidos ao governo de Kim Jong Un.

Numa entrevista, Barreto disse que suas preocupações com as finanças da organização religiosa se tornaram o principal motivo para seguir no hotel. Era seu “dever patriótico” como cidadão americano, comparando seus esforços a alguém que conseguisse deter um dos terroristas antes dos ataques de 11 de setembro.

— Lamento ter interrompido sua tentativa de financiar armas de destruição em massa — disse Barreto sobre a Igreja de Moon. — É Mickey Barreto contra a Coreia do Norte.

Embora Moon, que morreu em 2012, tenha nascido onde hoje é a Coreia do Norte, os laços atuais da sua igreja com o país não são claros. Ele já operou fábricas e um hotel de lá. Sua igreja passou por intenso escrutínio no Japão após o assassinato em 2022 do ex-primeiro-ministro japonês Shinzo Abe. O suposto assassino acreditava que Abe tinha ligações com a Igreja, que há muito é acusada de explorar pessoas vulneráveis ​​para obter doações, e não só no Japão.

Nas redes sociais, em 12 de março, Barreto mencionou reportagens sobre seu envolvimento com o hotel, após ter sido despejado. Nas publicações, ele fala sobre seu combate à Igreja da Unificação, ameaças de máfias internacionais e atentados.

“Estou botando a boca no trombone. Se quiserem me matar, me matem, mas não vou morrer calado”, escreveu ele. “Em 2018, pra salvação de todos, aqui chego eu em Nova York pra acabar com a farra dos Coreanos. Começo por me apoderar legalmente desde lindo prédio de 42 andares com vistas maravilhosas — tudo legalmente. Também tomei todos os outros bens deles”, alegou Barreto.

No texto, publicado mais de uma vez em seu perfil no Facebook, ele alega que a Igreja da Unificação foi responsável por roubar e vender crianças pra prostituição infantil, pegar escravos no Brasil nos anos 90, aprisionar seis mil índios no Paraguai e tomar conta das Nações Unidas.

“A máfia italiana me ofereceu USD$500 milhões de dólares, mas eu recusei. A máfia suíça veio aqui de comitiva me oferecer USD$200 milhões, mas recusei. Ficam me dizendo que tudo vai dar certo, que é só eu ficar quietinho — mas sofro ameaças e atentados de morte todos os dias”, acrescentou.

A história de como Barreto, que morava antes na Califórnia e adora teorias de conspiração, ganhou, e depois perdeu, os direitos ao quarto 2565, parece em tudo implausível: o velho golpe de um homem que afirma, sem provas, ser primo-irmão, 11 vezes afastado, do filho mais velho de Cristóvão Colombo. Aquele mesmo, o navegador.

Em uma tarde de verão, há quase seis anos, Barreto passou pela porta giratória do hotel localizado na Oitava Avenida e entrou em um saguão dominado por um lustre art déco de seis metros de altura, um tributo à arquitetura geométrica do hotel.

Mesmo para os padrões de Nova York, a quarto 2565 é pequeno, com pouco menos de 18 metros quadrados. As camas ocupam a maior parte do espaço, decorado com carpete marrom e dourado. Um pequeno armário pode acomodar um punhado de roupas. E a TV de 42 polegadas tem HBO grátis.

Ao longo de várias entrevistas recentes, Barreto descreveu ao New York Times o que aconteceu a seguir – os eventos que levaram a uma provação de anos para o hotel. Na conversa, Barreto oscila entre o lúcido e o instável. Ele diz que sofre com ataques de pânico e convulsões, mas insistiu que nunca foi diagnosticado com doença mental.

Naquela primeira noite, ele se instalou no quarto, em Midtown, com seu companheiro, Matthew Hannan. Antes daquela noite, diz Barreto, Hannan mencionou, de passagem, fato peculiar sobre as regras de habitação a preços acessíveis que se aplicam aos hotéis da cidade de Nova York. Bingo.

Com os laptops abertos, afirmou ele, os dois pesquisaram se o New Yorker estava sujeito à regra, um artigo pouco conhecido da Lei de Estabilização de Aluguéis.

Aprovada em 1969, a legislação criou um sistema de regulamentação de aluguéis em toda a cidade. E incluiu uma série de quartos de hotel, especificamente os construídos antes de 1969, alugados por menos de US$ 88 (ou cerca de R$ 440) por semana no mês de maio de 1968.

De acordo com a tal lei, um hóspede poderia se tornar residente permanente se solicitasse um aluguel com desconto. E com os mesmos serviços oferecidos a um hóspede regular, incluindo serviço de quarto, de limpeza, e uso de instalações, como a academia. O quarto torna-se assim, essencialmente, um apartamento subsidiado dentro de um hotel.

De acordo com os documentos judiciais, Barreto saiu do quarto do New Yorker na manhã seguinte, pegou o elevador até o saguão e cumprimentou um funcionário do hotel na recepção. Entregou então uma carta, endereçada ao gerente: queria alugar o 2565 por seis meses.

O funcionário ligou para o gerente e, após breve conversa, Barreto foi informado de que não existia a opção do aluguel no hotel. E que, sem pagar por mais uma noite, teria que desocupar o quarto até o meio-dia. Mas o casal não retirou seus pertences. Quando os carregadores o fizeram, Barreto rumou para o Tribunal de Habitação da Cidade de Nova York, no sul da ilha. E processou o hotel.

Em uma declaração manuscrita de três páginas datada de 22 de junho de 2018, Barreto citou leis estaduais, códigos locais e um processo judicial anterior ao argumentar que seu pedido de aluguel o tornava automaticamente um “residente permanente do hotel”. A remoção de seus itens, portanto, equivalia a um despejo ilegal.

Em audiência no dia 10 de julho, na ausência de representantes do hotel para se opor à ação, o juiz Jack Stoller decidiu a favor de Barreto. Stoller não apenas concordou com seus argumentos; citou a mesma jurisprudência aventada pelo brasileiro e ordenou que o hotel “devolvesse imediatamente ao peticionário a posse das instalações em questão, fornecendo-lhe uma chave”.

Barreto retornou ao quarto 2565 em poucos dias, mas agora como residente do hotel – e em breve, como seu novo proprietário.

De volta ao quarto, dias após a decisão, o casal leu repetidamente a decisão do juiz Stoller. Nele, não havia nenhuma ordem para que o hotel fornecesse aluguel, nenhum limite de estadia, nenhuma sugestão de que o aluguel era devido. Mas uma palavra era mencionada o tempo todo: posse. Barreto recebera um “julgamento final de posse”.

Barreto conta que ligou então para o tribunal para pedir que alguém explicasse o que isso significava.

—Que você tem a posse — conta Barreto, enfatizando de forma acentuada e lenta cada sílaba da palavra final que lhe teria sido dita. — Você não é um locatário. Você é dono de um prédio.

A propriedade tinha uma entidade cadastrada, o próprio hotel, identificado nos registros municipais como Bloco 758, Lote 37. Assim, citando a ordem do juiz, Barreto preencheu tranquilamente a papelada declarando ser aquela sua propriedade.

— Se tiver o direito de registrar tudo — Barreto se lembra de ter pensado: — Ué, então registrarei tudo.

Registrou.

Barreto tentou repetidamente solicitar uma escritura, mas foi rejeitado, por vários detalhes técnicos. Após a sexta tentativa, um funcionário disse que ele precisava entrar em contato com o gabinete do xerife da cidade, que, em Nova York, é uma divisão do Departamento Financeiro.

Barreto conta que conversou com um investigador do departamento, e este o perguntou por que tinha entrado com tantas ações. Ele respondeu ser dono do imóvel, mas que penava com dificuldades técnicas.

Enquanto isso, os proprietários do hotel entraram com sua própria ação para despejar Barreto, alegando que o hotel estava isento das disposições hoteleiras da lei habitacional. Mas os advogados não conseguiram apresentar documentação de maio de 1968 para provar que a tarifa semanal do New Yorker era na época superior a US$ 88 por semana. O juiz então negou continuidade ao processo.

Barreto, por sua vez, protocolou a escritura pela sétima vez. E aí conseguiu o que queria.

Na tarde de 17 de maio de 2019, quase um ano depois de Barreto ter entrado no hotel pela primeira vez, ele foi identificado no ACRIS como “proprietário do New Yorker”, um edifício de 111 mil metros quadrados.

Poucos meses depois, o juiz emitiu uma decisão: “A escritura em questão é forjada, em todos os sentidos”, escreveu. Barreto não era o proprietário do imóvel.

Apesar da decisão do juiz, Barreto ainda era residente legal do hotel. Sua casa, o quarto 2565, fica no fim de um corredor longo e estreito que ziguezagueia os elevadores. Mas ele se recusou a assinar um contrato – ou a pagar aluguel.

De volta ao tribunal, os advogados do hotel instaram um juiz a condenar Barreto por desacato, e um outro sinalizou que no dia 7 de fevereiro deste ano haveria outra audiência no caso.

Uma semana depois, os policiais apareceram antes do nascer do sol no apartamento no Upper West Side onde Barreto estava hospedado com Hannan.

Barreto foi preso e processado naquela manhã em um tribunal de Manhattan por 24 acusações – incluindo 14 por fraude criminal – no que os promotores disseram ser um “esquema criminoso para reivindicar a propriedade do hotel New Yorker”. Hannan, que Barreto disse não estar envolvido no caso, além de ter morado com ele no hotel por quase cinco anos, não foi indiciado ou acusado de qualquer crime.

Barreto, por sua vez, aguarda agora o julgamento no Supremo Tribunal do Estado de Nova York em Manhattan e poderá passar vários anos na prisão se for condenado. Na prisão antes de ser libertado sob fiança, Barreto disse que usou o único telefonema a que tinha direito para ligar para a Casa Branca, com uma mensagem informando sobre seu paradeiro.

Fonte: O Globo

© 2024 Blog do Marcos Dantas. Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo deste site sem prévia autorização.