‘Kharkiv é inquebrável’: sob ataques russos, segunda maior cidade da Ucrânia tenta se manter em pé

Buraco provocado por um míssil russo em uma escola em Kharkiv permite observar pedestres nas ruas
Buraco provocado por um míssil russo em uma escola em Kharkiv permite observar pedestres nas ruas — Foto: Tyler Hicks/The New York Times

A máquina de café espresso estava esquentando e Lilia Korneva contava dinheiro na loja onde trabalha em Kharkiv quando uma bomba russa explodiu nos arredores, com um som ensurdecedor e um impacto que a jogou no chão.

— Não consigo descrever em palavras como foi isso, foi aterrorizante — disse Korneva. Ela não se feriu, mas o quintal onde caiu a bomba foi destruído, e um homem que andava de bicicleta nos arredores morreu, segundo autoridades locais.

Um dia depois, o café estava aberto. Kharkiv, segunda maior cidade da Ucrânia, está aberta para negócios também, apesar de alguns dos maiores bombardeios vistos em toda a guerra, e em meio a temores de que os russos possam lançar uma nova ofensiva para tentar ocupar a cidade.

Os ataques da Rússia destruíram todas as três estações de energia locais, mas os moradores continuam a viver e trabalhar com poucas e nem sempre previsíveis horas de eletricidade todos os dias. Mais de 100 escolas foram danificadas ou destruídas, mas as aulas continuam, dentro das profundas estações de metrô. Quartéis de bombeiros e postos de paramédicos foram devastados, pondo em risco as vidas dos atendentes, mas sem impedir que façam seus trabalhos.

— Quando um foguete cai, em cerca de três, quatro horas, todo o vidro é recolhido e as ruas centrais são liberadas — disse Andrii Dronov, vice-chefe do Departamento de Bombeiros da cidade. — Pela manhã, parece que nada aconteceu e que não houve explosões.

Com a intensificação dos ataques, surgiram questões reais sobre por quanto tempo Kharkiv, a apenas 40 km da fronteira com a Rússia, poderá suportar sem o envio de sistemas mais robustos de defesa aérea. Desde março, a Rússia está usando uma das mais mortais armas de seu arsenal: poderosas bombas guiadas conhecidas como bombas planadoras, que levam centenas de quilos de explosivos em um único ataque.

— É uma estratégia para intimidar as pessoas, uma estratégia para fazer com que as pessoas saiam de casa, para que deixem a cidade — disse o prefeito de Kharkiv, Ihor Terekhov, afirmou em uma entrevista recente, conduzida em um local secreto porque seu escritório é considerado um alvo. — É a destruição da própria cidade.

Autoridades ucranianas afirmam que, desde janeiro, mais mísseis atingiram Kharkiv, hoje lar de 1,3 milhão de pessoas, do que em qualquer momento dos primeiros meses da guerra. Autoridades ucranianas determinaram a retirada das populações de vilarejos ao Leste da cidade, diante do agravamento da violência em áreas de fronteira.

Na semana passada, o chanceler russo, Sergei Lavrov, se tornou o mais graduado integrante do governo russo a sinalizar que Moscou tem planos para tomar Kharkiv, dizendo que ela estabelece “um papel importante” no plano do presidente Vladimir Russo para criar uma “zona sanitária” ao longo da fronteira russa. Analistas militares apontam ainda para o aumento da atividade militar na mesma área.

Ainda é incerto se a Rússia considera um ataque vindo do norte. Pode simplesmente ser uma tentativa de esticar as linhas ucranianas ao forçá-las a adotar medidas defensivas em uma nova frente de batalha ao norte, ao mesmo tempo em que provoca pânico entre a população em Kharkiv.

Para os moradores, a especulação é mais um elemento à ansiedade de viver sob bombardeios diários. Na segunda-feira, a Rússia atingiu a principal torre de TV com um míssil em plena luz do dia, derrubando parte da estrutura de 140 metros, em meio a uma nuvem de poeira e metal retorcido.

Mas o principal alerta vem das bombas planadoras, que são artefatos grandes, que Moscou tem em abundância, e que são equipados com asas e sistemas de navegação. Os russos recentemente modificaram as bombas para que planem por quase 100 km, deixando Kharkiv e outros centros urbanos dentro de seu raio de alcance.

Ao menos 15 dessas bombas caíram na cidade nas últimas três semanas, dizem integrantes da administração local.

Estoques cada vez menores de armas de defesa aérea deixaram vilas e cidades ucranianas mais vulneráveis nas últimas semanas, uma situação que a Ucrânia espera começar a reverter após a aprovação do pacote de US$ 60 bilhões aprovado pelo Congresso dos EUA, sancionado pelo presidente Joe Biden nesta quarta-feira.

Enquanto isso, moradores tentam achar formas para lidar com o caos e a incerteza da guerra. A cratera do lado de fora do café de Korneva, por exemplo, foi preenchida, vidros quebrados remendados, árvores danificadas derrubadas e um parquinho reparado. Ela está fazendo espressos novamente, mas para uma clientela menor.

Na semana passada, jornalistas do New York Times percorreram a cidade com paramédicos e bombeiros, observando a vida cotidiana e conversando com moradores e autoridades. As emoções eram visíveis. Não há uma maneira simples de explicar como é viver em uma cidade onde o risco de morrer é diário, e onde um míssil disparado da Rússia pode atingir qualquer lugar em menos de um minuto.

— Ninguém sabe se eles verão o dia amanhecer — diz o prefeito. — Mas apesar de tudo, nós vivemos, trabalhamos e amamos muito nossa cidade.

Não há um êxodo, como o visto no início da guerra, quando a artilharia atingia a população dia e noite, e o número de habitantes — eram dois milhões antes da invasão — caiu para 300 mil. Depois que os russos deixaram a área durante uma contraofensiva no final de 2022, mais de um milhão de moradores regressaram, dizem as autoridades.

— Me senti saudosa — disse Anna Ivanovna, uma estudante que foi para a Finlândia mas que voltou depois do recuo russo. — Aqui tenho meus planos, sonhos e aspirações.

Recentemente, um foguete caiu na casa de uma amiga de sua mãe. Ao invés de deixar a cidade, ela se mudou para a casa da mãe de Anna, e eles não têm planos de ir para outro lugar.

— Vou usar uma frase bem conhecida — disse Ivanovna. — Kharkiv é inquebrável, mesmo com as pessoas visivelmente exaustas.

Fonte: O Globo

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