Judeus redescobrem suas origens (e seu orgulho) na Polônia 80 anos após o Holocausto

Poloneses participam de workshop dentro de uma sinagoga em Cracóvia, na Polônia
Poloneses participam de workshop dentro de uma sinagoga em Cracóvia, na Polônia — Foto: Divulgação/Festival de Cultura Judaica

Quando falamos de judeus na Polônia, a primeira coisa que se vem à cabeça é o Holocausto. Em poucos anos, os nazistas assassinaram 90% dos 3,5 milhões de judeus que viviam no país à época — uma das comunidades judaicas mais antigas do mundo. E nos anos seguintes, o cenário continuou sombrio: apesar de ser mantida como nação independente após o conflito, a Polônia passou a fazer parte do bloco comunista liderado pela União Soviética, um regime que também perseguiu os judeus, principalmente no fim da década de 1960. Pressionados, os 350 mil judeus poloneses sobreviventes à Segunda Guerra perderam seus empregos, viram suas escolas e sinagogas serem fechadas e foram perseguidos pelo governo soviético. Com isso, acabaram tendo dois destinos: emigrar, principalmente para países como Dinamarca, Suécia e Estados Unidos ou Israel, perdendo sua cidadania polonesa, ou se desconectar completamente de seu passado.

Antes da guerra, os 70 mil judeus que viviam em Cracóvia representavam 25% da população da cidade. Após 1945 e depois da perseguição soviética, os números se tornaram praticamente desconhecidos. Felizmente, muita coisa mudou de lá para cá: o bairro judeu da cidade, hoje a segunda maior do país, é um dos mais efervescentes de Cracóvia, com bares, restaurantes e cafés que tentam resgatar as tradições judaicas, e alguns que até ocupam antigas sinagogas.

Nos últimos dez anos, os poloneses que se identificam como judeus também aumentaram: passaram de 18 mil para 80 mil — número que deve ser ainda maior, já que muitos desconhecem seu passado, explica Sebastian Rudol, vice-diretor do Centro Comunitário Judaico (JCC) de Cracóvia, que conta com 850 membros.

O aumento aconteceu principalmente porque a forma de contabilizar os judeus na Polônia mudou: antes eles tinham que escolher entre judeus e poloneses; agora, podem se identificar como judeus e poloneses ao mesmo tempo.

— Com o fim da União Soviética, a primeira vez que a Polônia se tornou um país livre desde a Segunda Guerra, houve um interesse maior em entender a cultura judaica, com pesquisas, livros, filmes. Isso criou um ambiente propício para que as famílias que haviam se escondido culturalmente,  inclusive mudando seus nomes, ‘saíssem do armário’ e se reconectassem com o judaísmo — afirma Rudol. — Muitos jovens poloneses sequer sabiam que seus avós eram judeus, e só descobriram isso nos últimos 20 ou 30 anos. São os ‘novos judeus’.

Um dos grandes responsáveis por esse renascimento é Janusz Makuch, fundador do Festival de Cultura Judaica, que acontece todo ano no mês de julho em Cracóvia desde 1988, um ano antes da queda do regime comunista.

— Este processo de descoberta das raízes judaicas ainda está em curso e muito provavelmente sempre fará parte da comunidade judaica no país. afirma ao GLOBO. — A Polônia é o único país nesta parte do mundo onde a comunidade judaica ainda cresce a partir dos ‘recursos naturais’, o que significa que não há imigração de outros países.

O JCC é outro pilar importante para a comunidade em Cracóvia. No centro, que existe há 20 anos, metade dos funcionários são judeus poloneses e a outra metade não é de origem judaica — uma situação relativamente comum no país.

— Os pioneiros na abertura de museus, centros comunitários e estabelecimentos no país eram poloneses que não tinha origem judaica. Naquela época, e até hoje de certa maneira, os judeus mais velhos que se lembravam dos tempos do nazismo e do comunismo se sentiam desconfortáveis para falarem abertamente sobre suas origens — diz Rudol, que não é judeu e começou a trabalhar no centro há 14 anos, como voluntário. 

Diferentemente da capital, Varsóvia, quase totalmente destruída pelos nazistas, Cracóvia conseguiu manter-se praticamente de pé após a Segunda Guerra. E hoje, o bairro de Kazimiers — onde os judeus se concentravam antes de serem expulsos para o gueto, do outro lado da cidade — é um dos mais tradicionais da cidade, onde se vivem artistas e intelectuais poloneses. 

O lançamento do filme “A Lista de Schindler”, de 1993, foi um dos impulsos para a revitalização do bairro, onde a maioria das cenas foram filmadas. Ao seu redor, muitos restaurantes, lojas e cafés exibem a bandeira de Israel e nas barraquinhas de rua podem ser comprados souvenires judaicos. O Café Hevre, aberto em 2016, por exemplo, fica nas dependências de uma antiga sinagoga. Nas paredes do bar, parcialmente conservado, é possível ver inscrições judaicas e afrescos raros, ainda conservados.

— Cracóvia tem uma herança judaica profundamente enraizada, com séculos de presença que contribuíram para a sua tapeçaria cultural. O renascimento da vida judaica dá nova vida a locais históricos, sinagogas e tradições que antes prosperavam aqui — disse ao GLOBO Robert Piaskowski, conselheiro do prefeito da cidade na área de cultura. — Também promove o diálogo intercultural, quebrando estereótipos e dissipando preconceitos.

A última edição do Festival de Cultura Judaica, entre 28 de junho e 2 de julho, contou com quase 300 eventos, entre workshops, palestras e apresentações musicais, durante 10 dias, que reuniram cerca de 30 mil pessoas de vários países. De Israel, o festival contou com apresentações de Liraz Charchi, Shay Tzabari, Neta Elkayam, Kutiman, Boom Pam e do Piyot Ensemble, um grupo multigeracional de 18 músicos e intérpretes.

A ideia inicial era fazer uma única edição, como “uma espécie de lembrete à sociedade polonesa de que os judeus têm uma contribuição significativa para a nossa cultura”, conta Makuch. Hoje, é um dos eventos culturais mais importantes da cidade e do país. Do total, 70% do público é da Polônia, e 30% de outros países, princialmente de Israel, da União Europeia e dos EUA.

— Para muitos dos que acabaram de descobrir a sua identidade, o festival foi o primeiro passo na tradição judaica e no mundo judaico em geral. Para os judeus de origem polonesa que viveram na diáspora, ele é um motivo para regressar ao país dos seus antepassados.

Muitos brasileiros, filhos e netos de poloneses judeus, veem o movimento como uma chance de reencontrar as origens. Caso de Carlos Panek que decidiu morar na Polônia há 15 anos. Ainda na faculdade, aos 18, teve vontade de conhecer mais a cultura de sua avó, com quem tinha uma relação muito forte. Polonesa de origem judaica, ela vivia na França quando a guerra estourou. De lá, migrou para o Brasil, onde se casou com um judeu.

Há sete anos, a própria avó Anita Dolly Panek, que hoje tem 93 anos, voltou para Cracóvia, após se aposentar.

— Me identifico com a cultura judaica pelo trauma que minha família sofreu, que teve que esconder quem ela é. Frequento atividades no JCC. Mas não sou religioso. — conta Panek, que se considera mais polonês que judeu.

A jornalista Natalia Manczyk, de 35 anos, também fez o caminho de volta em 2021. Com passaporte polonês — seu avô deixou o país fugindo da guerra aos 4 anos, rumo ao Brasil —, ela sempre foi criada dentro da cultura judaica. O avô, no entanto, nunca falou sobre a vida na Polônia.

— Meu avô sempre fez muita questão de manter as tradições judaicas e passar todos os ensinamentos religiosos. Eu nunca tive contato com outra cultura, sempre me considerei judia — conta ao GLOBO. — Ao mesmo tempo, sempre evitou falar da Polônia. Morreu dizendo que não sabia falar polonês e só se comunicava em ídiche [a antiga língua dos judeus da Europa Central e Oriental] enquanto viveu aqui. Eu não acredito, acho que uma boa parte é por trauma.

Segundo a jornalista, ainda há muito preconceito por parte da comunidade judaica de fora do país em relação aos poloneses, que acabam sendo culpados pelo extermínio nazista durante a Polônia ocupada. Para ela, é uma ferida que ainda não foi totalmente cicatrizada. De ambos os lados.

* A repórter viajou a convite do Memorial do Holocausto de São Paulo, com apoio do governo da Polônia

Fonte: O Globo

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