Jogo para livrar Jair Bolsonaro

Ministro André Mendonça profere seu voto no julgamento da Ação Penal (AP) 1060, que tem como réu Aécio Lúcio Costa Pereira, acusado de participação nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro
Ministro André Mendonça profere seu voto no julgamento da Ação Penal (AP) 1060, que tem como réu Aécio Lúcio Costa Pereira, acusado de participação nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro — Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

O começo do julgamento dos vândalos de 8 de janeiro separou o Supremo Tribunal Federal em duas linhas opostas. Se fosse majoritária a tese dos ministros Nunes Marques e André Mendonça, de que não foi uma tentativa de golpe de Estado, o processo jamais chegaria ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Se não há crime, não há criminoso. Se não foi tentativa de golpe, não existem golpistas, e muito menos o principal mentor do atentado à democracia. A tentativa de livrar Bolsonaro bem no início desse julgamento fracassou. A quinta-feira terminou com mais uma dor de cabeça para o ex-presidente: a informação publicada pela revista Veja de que o dinheiro da venda dos relógios foi entregue a ele “em mãos” pelo tenente-coronel Mauro Cid.

Marques e Mendonça usaram argumentos rudimentares. Mendonça disse que um golpe de Estado não é só derrubar o governo, mas ter um plano para estabelecer uma nova ordem. “Eu preciso definir o que eu vou fazer com o Congresso, o que eu vou fazer com o STF, o que vai ser feito com a imprensa, com a liberdade das pessoas, com o meio universitário”. Ele disse que não vira isso nos “manifestantes”. Dado que ele não viu o planejamento, não foi golpe.

A tese é um assalto à inteligência alheia. Todos os atos golpistas que ocorreram durante o governo Bolsonaro e que chegaram ao ápice no 8 de janeiro tinham um lema claro que estava nas faixas, camisetas e palavras de ordem. Eles pediam a volta do AI-5. No Brasil, esses três caracteres são suficientes para revelar o plano que o ministro Mendonça não viu. Significa eliminar todos os direitos e garantias individuais, fechar o Congresso, tirar os ministros indesejados do Supremo, censurar a imprensa, invadir universidades, prender, torturar e matar os dissidentes. Esse era o plano, era a “nova ordem”. AI-5 foi isso. Pedir a sua volta tem um inequívoco significado. Para quem não entendeu a senha dos três caracteres malditos, os golpistas foram ainda mais claros quando pediram em faixas e camisetas a “intervenção militar”.

André Mendonça tentou um caminho escorregadio, o de culpar o governo que aquela turba ameaçou. Ele disse que fora ministro da Justiça e que havia se preparado para as manifestações de 7 de setembro, nos anos anteriores, e não entendia por que essas providências não foram tomadas. Foi quando o ministro Alexandre de Moraes lembrou que também ocupara o mesmo cargo. “Com todo o respeito, Vossa Excelência querer falar que a culpa do 8 de janeiro é do ministro da Justiça”. A propósito, as manifestações para as quais Mendonça diz ter se preparado eram a favor do governo ao qual servia. Não era uma multidão hostil e antidemocrática que destruiu os prédios dos Três Poderes.

O que houve nesse início de julgamento não foi apenas uma divergência jurídica. Se prevalecesse a tese de Mendonça e de Nunes Marques o resultado seria isentar Jair Bolsonaro. O projeto era transformar o 8 de janeiro em apenas uma baderna sem propósito, sem liderança, sem periculosidade. Assim estaria protegido o chefe e inspirador da confusão.

Foram tentados diversos argumentos. Todos sem sentido, mas na mesma direção. O de que não houve tentativa de golpe porque ele não se consumou. O ministro Alexandre de Moraes respondeu com ironia, dizendo que o crime é a tentativa de golpe. Se o golpe se consumasse eles não estariam ali para julgar. Sustentaram também, que foi um movimento sem liderança e planejamento. Isso contraria a realidade dos acampamentos que ficaram três meses em frente aos quartéis, do chamado para a “festa da Selma”, das provas de financiamento. Mas por que enfileirar argumentos inconsistentes? Foi um negacionismo com propósito. Se fosse apenas um ataque anárquico, só os executores pagariam a conta. Se o plano desse certo, difícil seria apagar tudo o que Bolsonaro disse e fez para solapar a institucionalidade brasileira durante os quatro anos do seu mandato.

Há muito o que Bolsonaro tem a acertar com a Justiça nas diversas frentes de investigação. A delação de Mauro Cid vai esclarecer muita coisa. A reportagem de capa da Veja, da repórter Marcela Mattos, revela que Cid entregou a Bolsonaro diretamente o dinheiro da venda de peças do acervo público. O ex-ajudante de ordens acha que isso foi imoral mas não ilegal. Aí é que Cid se engana.

Fonte: O Globo

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