Irã x Israel: Em vigor há quase duas décadas, sanções não impediram avanço de programa de mísseis iraniano

Presidente do Irã, Ebrahim Raisi, participa de lançamento do míssil hipersônico Fattah
Presidente do Irã, Ebrahim Raisi, participa de lançamento do míssil hipersônico Fattah — Foto: Guarda Revolucionária do Irã, via Sepah News / AFP

Em meio a discussões sobre a resposta israelense ao Irã após os ataques de sábado, diplomatas discutem a expansão de sanções internacionais contra Teerã, voltadas ao programa nuclear e ao de desenvolvimento de mísseis balísticos. No domingo, em sessão no Conselho de Segurança da ONU, o representante israelense cobrou medidas urgentes, e a Alemanha declarou nesta terça-feira que apoia ampliar as medidas já em vigor.

Os iranianos convivem há décadas com sanções, inclusive sobre suas atividades militares, e mesmo assim construíram um dos arsenais mais poderosos do Oriente Médio, deixando com isso uma pergunta no ar: afinal, esse tipo de medida diplomática e econômica é eficaz?

O Irã hoje é o segundo país com mais sanções no mundo — até janeiro, eram 4.953 medidas contra pessoas, empresas e instituições governamentais, de acordo com a consultoria Castellum —, atrás apenas da Rússia. As primeiras foram aplicadas pouco depois da Revolução Islâmica de 1979, quando estudantes invadiram a embaixada dos EUA em Teerã, e tratavam do bloqueio de bens e de um embargo comercial. Elas foram suspensas em 1981, mas três anos depois, em meio à guerra contra o Iraque, os americanos impuseram um embargo sobre a venda de armas.

Nessa época, ficou evidente que, assim como países aplicam sanções, os alvos delas estabelecem mecanismos para burlá-las. Em 1986, a imprensa americana revelou um esquema de tráfico de armas aos iranianos, que envolvia integrantes da CIA, a principal agência de inteligência dos EUA, de Israel e da Nicarágua, um escândalo conhecido como Irã-Contras. O então presidente, Ronald Reagan, não foi implicado, e se livrou de punições.

Após o fim da guerra, o Irã foi relegado a um segundo “escalão” nas prioridades de Washington — o Iraque, comandado por um Saddam Hussein cada vez mais hostil, era considerado uma ameaça bem mais imediata. Mas isso não impediu novas sanções a Teerã, ligadas ao “patrocínio a atividades terroristas”, como o apoio ao libanês Hezbollah.

As sanções podem variar em tipo, grau e escopo. Algumas impedem a movimentação internacional de pessoas citadas, e outras congelam bens em territórios dos países que as aplicam — é o caso dos bilhões de dólares da Rússia retidos na União Europeia e EUA. Outras vetam a exportação de certos itens, como materiais de “uso duplo”, que podem ser usados em atividades civis e militares. No caso das sanções secundárias, empresas e pessoas que conduzam negócios com indivíduos e entidades citadas podem sofrer punições, como serem impedidas de operar em determinados países.

No final da década de 1990, com os primeiros indícios de que houve uma tentativa de militarizar o programa nuclear iraniano, os EUA aplicaram um pacote de sanções, ampliado nos anos seguintes e que culminou, em 2006, na resolução 1737 do Conselho de Segurança da ONU. O texto, aprovado por unanimidade, impôs medidas contra as atividades de enriquecimento de urânio e de desenvolvimento de mísseis balísticos.

Após a resolução 1737, foram aprovadas outras quatro medidas, sendo que a 1929, de 2010, proibiu a realização de atividades ligadas ao programa de mísseis, e impediu que outros governos fornecessem apoio material ou humano.

Tal como o programa nuclear, o desenvolvimento de mísseis no Irã começou nos tempos do xá Reza Pahlevi, quando o país mantinha uma relação próxima com os EUA. Com a queda do regime e o início da guerra contra o Iraque, quando quase todos os antigos aliados e inimigos estavam ao lado de Bagdá, a opção foi recorrer a países como Líbia e Coreia do Norte para comprar mísseis, incluindo o soviético Scud. Essa arma serviu de base para o desenvolvimento de alguns modelos domésticos, como os da família Shahab e os Qiam.

Neste momento, as sanções já começavam a limitar algumas atividades militares, e o Estado, sem qualquer intenção de aceitar as exigências da comunidade internacional, criou suas próprias cadeias de suprimentos clandestinas.

Uma peça central no roteiro é a Guarda Revolucionária, principal ator na economia do Irã. Uma rede de empresas de fachada, em boa parte baseadas nos Emirados Árabes Unidos e mantidas por pessoas ligadas à Guarda, permite negociações e transferências financeiras pouco claras, que evitam as sanções. Sem acesso ao sistema de pagamentos internacionais Swift, as transações podem ser feitas através de correspondentes em bancos regionais ou por meio de maletas cheias de dinheiro.

Companhias em países como Turquia e China facilitam o envio de peças e equipamentos banidos, incluindo semicondutores fabricados no Ocidente, e empresas no Irã servem como receptoras. Uma delas, a PB Sadr, entrou para a lista de sanções dos EUA em 2022, acusada de servir de intermediária na compra de peças para mísseis e para centrífugas de enriquecimento de urânio. Novas companhias são criadas conforme a necessidade, em um modelo azeitado há décadas, que rende fortunas a seus controladores e que mantém a regularidade e o desenvolvimento de mísseis e drones.

Um relatório publicado em novembro de 2022 pelo centro de estudos britânico Conflict Armament Research, revelou que drones vendidos à Rússia e usados na guerra na Ucrânia levavam instrumentos ocidentais a bordo.

— Em três modelos não tripulados, vimos mais de 500 componentes — disse ao New York Times Damien Spleeters, que liderou a investigação na Ucrânia. — Identificamos mais de 70 fabricantes [de peças] em 13 países diferentes, e cerca de 82% dos componentes foram feitos nos EUA.

O esquema montado pela Guarda Revolucionária permitiu que o Irã criasse um dos mais poderosos arsenais balísticos do Oriente Médio. No sábado, algumas dessas armas, como os drones Shahed-136 e Shahed-238, além dos mísseis Emad, foram usadas no ataque a Israel, mas especialistas apontam que os itens mais modernos não estavam no ar.

É o caso do Fattah-1, apresentado como o primeiro míssil hipersônico do Irã, e capaz, segundo o governo local, de chegar a Israel em poucos minutos. Outro modelo não utilizado foi o Khorramshahr, igualmente capaz de atingir Israel e que teria capacidade de levar uma ogiva nuclear, caso o Irã resolva desenvolver uma. A arma leva o nome da cidade que viu alguns dos mais violentos combates na guerra contra o Iraque.

Em outubro do ano passado, como parte do quase finado acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, foram retiradas as sanções da ONU sobre os mísseis, em tese permitindo sua exportação (que já acontece há muitos anos) e a compra legal de equipamentos no exterior. Contudo, EUA e União Europeia anunciaram novas sanções às atividades no setor.

— Essas sanções exercerão pressão sobre o programa de mísseis e drones do Irã, além de restringir as vendas de armas convencionais e as relações militares com países como Venezuela e Rússia, incluindo o envio de drones iranianos que Moscou está usando contra civis na Ucrânia — afirmou na época um integrante do Departamento de Estado à Reuters.

Após o ataque de sábado, Israel, que discute uma possível retaliação militar contra Teerã, quer usar o apoio de aliados para implementar novas medidas diplomáticas contra os iranianos, incluindo sanções voltadas ao sistema de mísseis, além da classificação da Guarda Revolucionária como uma organização terrorista. Mas como mostraram as últimas décadas, quebrar o sistema criado por Teerã para burlar as restrições internacionais pode ser uma tarefa complicada.

Fonte: O Globo

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