Irã cria rotas de contrabando para enviar armas à Cisjordânia e escalar pressão sobre Israel

Aiatolá do Irã, Ali Khamenei, recebe o líder do Hamas, Ismail Haniyeh, em Teerã
Aiatolá do Irã, Ali Khamenei, recebe o líder do Hamas, Ismail Haniyeh, em Teerã — Foto: IRANIAN SUPREME LEADER'S WEBSITE / AFP

O Irã está operando uma rota de contrabando pelo Oriente Médio, empregando agentes de inteligência, militantes e gangues criminosas, para entregar armas aos palestinos na Cisjordânia ocupada, de acordo com autoridades dos EUA, Israel e Irã. O objetivo, conforme descrito por três autoridades iranianas, é fomentar a instabilidade contra Israel inundando o enclave com o maior número de armas possível.

A operação secreta está aumentando as preocupações de que Teerã esteja buscando transformar a Cisjordânia no próximo ponto de conflito na longa e contínua guerra que Israel e Irã travam nas sombras — conflito que ameaçou escalar neste mês, após o ataque israelense a um complexo da embaixada iraniana na Síria, que matou sete comandantes das Forças Armadas do país.

Muitas armas contrabandeadas para a Cisjordânia viajam principalmente por dois caminhos do Irã através do Iraque, Síria, Líbano, Jordânia e Israel, disseram os funcionários. À medida que as armas cruzam as fronteiras, acrescentaram os funcionários, elas mudam de mão em mão entre um elenco multinacional que pode incluir membros de gangues criminosas organizadas, militantes extremistas, soldados e agentes de inteligência. Um grupo-chave na operação, disseram os funcionários iranianos e analistas, são os contrabandistas beduínos que levam as armas através da fronteira da Jordânia para Israel.

O New York Times entrevistou altos funcionários de segurança e governamentais com conhecimento do esforço do Irã para contrabandear armas para a Cisjordânia, incluindo três de Israel, três do Irã e três dos Estados Unidos. Os funcionários dos três países pediram anonimato para discutir operações secretas para as quais não foram autorizados a falar publicamente.

— Os iranianos queriam inundar a Cisjordânia com armas e estavam usando redes criminosas na Jordânia, na Cisjordânia e em Israel, principalmente beduínos, para mover e vender os produtos — disse Matthew Levitt, diretor do programa de contraterrorismo do Washington Institute for Near East Policy, uma organização de pesquisa, e autor de um estudo sobre a rota de contrabando.

O contrabando para a Cisjordânia, disseram os analistas, começou cerca de dois anos atrás, quando o Irã começou a usar rotas anteriormente estabelecidas para contrabandear outros produtos proibidos. Não está claro exatamente quantas armas chegaram ao território nesse período, embora os analistas digam que a maioria sejam armas leves.

Nos meses desde o ataque liderado pelo Hamas em 7 de outubro, contra Israel, a partir da Faixa de Gaza, as forças de segurança israelenses realizaram uma grande operação de repressão em toda a Cisjordânia.

O Exército israelense descreve as incursões como parte de seu esforço de contraterrorismo mirando o Hamas e outros grupos para erradicar armas e militantes. Centenas de palestinos foram mortos pelas forças israelenses, incluindo aqueles acusados de atacar israelenses, segundo a ONU, em um dos períodos mais mortais em décadas.

Grupos de direitos humanos dizem que muitos palestinos estão sendo detidos injustamente, especialmente aqueles mantidos em prisões israelenses sem um julgamento formal. Eles dizem que não está claro quantos dos detidos possuem laços genuínos com grupos considerados terroristas por Israel.

— Essas prisões incluem muitos que estão sendo detidos por razões que não estão claras — disse Omar Shakir, diretor de Israel e Palestina da Human Rights Watch. — O governo israelense tem um longo histórico de detenções abusivas, prisões arbitrárias e detenção de pessoas por exercerem seus direitos básicos.

Por anos, os líderes do Irã declararam a necessidade de armar combatentes palestinos na Cisjordânia ocupada. Teerã há muito tempo fornece armas para atacar Israel a militantes em outras regiões, membros do chamado Eixo de Resistência, incluindo seus dois principais aliados palestinos em Gaza, Hamas e Jihad Islâmica.

Ambos os grupos, que também operam na Cisjordânia, são designados como organizações terroristas pelos EUA, União Europeia, Israel e outros países.

Os funcionários iranianos disseram que Teerã não escolheu um grupo específico para sua generosidade, optando em vez disso por inundar amplamente o território com armas e munições.

Afshon Ostovar, professor associado de assuntos de segurança nacional na Naval Postgraduate School e especialista no Exército do Irã, disse que o país está se concentrando na Cisjordânia porque entende que o acesso a Gaza será limitado no futuro próximo.

— A Cisjordânia realmente precisa ser a próxima fronteira que o Irã vai penetrar e proliferar armas, porque se eles forem capazes de fazer isso, então a Cisjordânia se tornará um problema tão grande, se não maior, do que Gaza — disse ele.

O Fatah, facção palestina que controla a Autoridade Palestina e, com ela, grande parte da Cisjordânia, acusou o Irã na semana passada de tentar “explorar” os palestinos para seus próprios fins, espalhando o caos no território. Em um comunicado, o Fatah disse que não permitirá que “nossa causa sagrada e o sangue de nosso povo sejam explorados” pelo Irã.

Em comunicado, a Missão do Irã na ONU não comentou a operação de contrabando, mas enfatizou o que disse ser a importância de os palestinos pegarem em armas contra Israel.

— A avaliação do Irã postula que a única via eficaz para resistir à ocupação pelo regime sionista é através da resistência armada — disse Amir Saeid Iravani, embaixador do país na ONU. — As forças de resistência palestinas possuem a capacidade de fabricar e adquirir os armamentos necessários para sua causa.

Mesmo após 7 de outubro, quando os aliados do Irã lançaram cada vez mais ataques do Líbano e do Iêmen, Teerã e Jerusalém preferiram restringir grande parte de seu conflito às sombras. Mas essa guerra secreta explodiu na visão pública na semana passada com o ataque aéreo contra um prédio da embaixada iraniana na Síria.

Aviões de guerra israelenses atacaram, em 1º de abril, uma reunião de líderes das Forças Armadas do Irã e membros da Jihad Islâmica Palestina em Damasco, disseram os funcionários iranianos. Entre os mortos estava o general Mohammad Reza Zahedi, de 65 anos, do Corpo da Guarda Revolucionária do Irã, responsável pelas operações secretas do país na Síria e no Líbano, por onde passa parte da rota de contrabando de armas, disseram os funcionários israelenses, iranianos e americanos.

Esse ataque veio logo após outro ataque israelense. Em 26 de março, as forças israelenses atacaram um ponto chave da rota de contrabando no leste da Síria, de acordo com os funcionários americanos, iranianos e dois dos funcionários israelenses.

A maioria das armas contrabandeadas, disseram os analistas, são armas leves como pistolas e rifles de assalto. O Irã também está contrabandeando armas avançadas, segundo os funcionários americanos e israelenses. Essas armas, disseram os funcionários israelenses, incluem mísseis antitanque e granadas propulsadas por foguete, que voam rápido e baixo no solo, criando um desafio para Israel ao defender alvos civis e militares de fogo de curto alcance.

A agência de segurança interna de Israel, Shin Bet, disse em comunicado que recentemente apreendeu equipamentos militares avançados contrabandeados para a Cisjordânia. O comunicado acrescentou que o Shin Bet “leva muito a sério o envolvimento em atividades dirigidas pelo Irã e suas afiliadas e continuará a realizar medidas ativas o tempo todo para monitorar e frustrar qualquer atividade que coloque em perigo a segurança do Estado de Israel”.

Trabalhando com seus aliados militantes e redes criminosas estabelecidas, o Irã está usando duas rotas principais para levar armas à Cisjordânia, disseram os funcionários israelenses, iranianos e americanos.

Ao longo de uma rota, militantes apoiados pelo Irã e operativos iranianos levam as armas da Síria para a Jordânia, disseram os funcionários. A partir daí, elas são transferidas na fronteira para contrabandistas beduínos. Os nômades levam as armas até a fronteira com Israel, onde são recolhidas por gangues criminosas que então as movem para a Cisjordânia.

O esforço iraniano aproveita uma rota de contrabando bem estabelecida na Jordânia, que compartilha uma fronteira porosa de quase 500 km com Israel. No ano passado, um legislador jordaniano foi indiciado em Amã, Jordânia, depois de ser pego em 2022 tentando contrabandear mais de 200 armas para a Cisjordânia. A origem das armas não foi esclarecida.

Um dos funcionários iranianos disse que o aumento da segurança desde 7 de outubro, tanto por Israel quanto pela Jordânia, aumentou o risco de ser pego, especialmente para beduínos e árabes-israelenses que desempenham papéis críticos por sua capacidade de cruzar fronteiras.

Uma segunda rota, mais desafiadora, pula a Jordânia e leva as armas da Síria para o Líbano, disseram dois dos funcionários americanos. A partir daí, muitas das armas são contrabandeadas para Israel, onde gangues criminosas as recolhem e as movem para a Cisjordânia.

A rota através do Líbano, disse Levitt, é mais difícil, principalmente desde o início da guerra em Gaza, porque a fronteira em que o Hezbollah opera é mais patrulhada tanto pelo Exército israelense quanto por soldados da ONU.

Muito do trabalho de coordenação da rota de contrabando é feito por operativos iranianos das Forças Quds, a agência de inteligência externa da Guarda Revolucionária, de acordo com dois dos funcionários iranianos ligados à organização.

Além de matar o general Zahedi, o ataque israelense contra o prédio da embaixada iraniana em Damasco na semana passada matou outros dois generais das Forças Quds e outros quatro oficiais, disse o Irã, tornando-se um dos ataques mais mortais da guerra nas sombras.

Os funcionários americanos e dois dos funcionários israelenses disseram que uma série de ataques na Síria uma semana antes visava duas divisões de inteligência iranianas envolvidas no contrabando. Uma unidade, conhecida como Divisão 4000, é supervisionada diretamente pela Guarda Revolucionária. A outra, Divisão 18840, é operada pelas Forças Quds.

Dias antes do ataque israelense ao prédio da embaixada em Damasco, o líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, deu seu selo de aprovação pessoal aos militantes palestinos que recebem muitas das armas do Irã. Em Teerã, ele se encontrou com os líderes de dois grupos armados: Ziyad al-Nakhalah, da Jihad Islâmica Palestina, e Ismail Haniyeh, o líder político do Hamas.

O aiatolá Khamenei, que anos atrás emitiu publicamente uma ordem para armar a Cisjordânia, disse aos dois líderes, segundo a mídia estatal, que o Irã não hesitaria em apoiar os palestinos e sua causa.

— Não teria sido fácil para o povo palestino resistir a esta batalha se não fosse pelo apoio contínuo e consistente do Irã em todos os níveis político, militar e de segurança — disse al-Nakhalah em um discurso em Teerã.

Fonte: O Globo

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