Igualdade adiada: Herança do apartheid segue viva 30 anos depois na África do Sul

Os reis da Holanda, Willem-Alexander e Máxima, visitam o Museu do Apartheid em Johannesburgo, em 2023: diferenças sociais persistem
Os reis da Holanda, Willem-Alexander e Máxima, visitam o Museu do Apartheid em Johannesburgo, em 2023: diferenças sociais persistem — Foto: Remko De Waal/ANP MAG/ANP via AFP

Ikoh Uzile Mpako ainda era adolescente quando foi às ruas comemorar a vitória de Nelson Mandela, sacramentada naquele 27 de abril de 1994. Até então, temia sair de casa para não presenciar o banho de sangue imposto por um regime brutal de segregação racial, que durou quase cinco décadas e ficou conhecido como apartheid (separação, em africâner). Mandela, naquela quarta-feira histórica, tornara-se o primeiro negro a conquistar a Presidência da África do Sul, após passar 27 anos, dos seus então 75, na cadeia. Condenado à prisão perpétua junto a dezenas de companheiros acusados de terrorismo, viu seu nome se transformar em um ícone global da luta contra um governo racista de minoria branca, responsável pela morte de aproximadamente 20 mil pessoas, quase todas negras. O mundo clamou por sua libertação.

Passados 30 anos do Dia da Liberdade, completados neste sábado, Mpako se tornou um respeitado chef de cozinha e disputado guia cultural de Johannesburgo, por onde caminha enquanto aponta os painéis e grafites gigantes nos edifícios, desenhos que mantêm viva a memória de dor e desespero de milhares de famílias vítimas de uma ideologia discriminatória e opressiva. Apesar das conquistas importantes, no entanto, para ele o “legado do apartheid ainda está vivo”.

— Você ainda encontra áreas que são predominantemente brancas, indianas, chinesas, e a minoria branca ainda possui a terra e dirige a economia. O apartheid está vivo, mas agora não é tão físico e racial como antes, é mais intelectual e econômico. Uma pessoa branca com as mesmas qualificações que um negro ainda recebe mais — afirma ele, nascido em Mthatha, cidade natal de Mandela.

O fim do apartheid, iniciado em 1990 e sacramentado com a eleição de Mandela, em 1994, proporcionou uma série de transformações sociais indiscutíveis, com revogação de leis discriminatórias e políticas de inclusão bem-sucedidas. Mas a desigualdade persiste. Hoje, estima-se que 40% dos cargos de gerência em empresas sul-africanas sejam ocupados por negros, que são 81% da população. Na Cidade do Cabo, capital legislativa, no extremo sul do país, percebe-se ainda menos negros em postos de liderança, onde os brancos e estrangeiros dominam as vinícolas, um dos pontos fortes da economia sul-africana, e exploram o setor do turismo, impulsionado por suas belezas naturais.

Andar pelas ruas de Johannesburgo, maior cidade da África do Sul, cuja população é de aproximadamente 5 milhões de habitantes, nos remete às grandes capitais do Brasil. Tanto nos bairros menores quanto em seu centro financeiro, é comum ver mansões próximas às favelas, e concessionárias de carros importados na mesma via onde moradores em situação de rua se amontoam em barracas improvisadas.

— É uma mazela que não conseguimos vencer com o fim do apartheid. Ainda há pessoas vivendo sem o básico como água e moradia adequada. Sequer temos energia por 24 horas seguidas — completa Mpako.

E ao mesmo tempo em que respira uma liberdade impensável até 1994, ele vivencia um impasse compartilhado com outros compatriotas, em sua maioria jovens, hoje críticos à gestão do Congresso Nacional Africano (CNA), movimento antirracista que virou partido e levou Mandela à vitória inédita há 30 anos.

— A geração mais jovem sente que a liberdade de movimento e de expressão não é suficiente. As pessoas estão um pouco cansadas das promessas vazias e da corrupção de parte do partido.

O advogado Emile Myburgh, de 51 anos, nascido e criado em Johannesburgo, concorda:

— A maioria dos jovens não está nem aí para as eleições. Perderam a fé que votar possa mudar suas vidas, porque todos os políticos são acusados de roubar. Ou já decidiram que irão emigrar um dia. Infelizmente, o futuro do país não é muito relevante para eles.

São os jovens os mais afetados pelo recorde de desemprego, acima dos 30%. Especialmente os não escolarizados — falta mão de obra qualificada no país. A porcentagem de adolescentes que não completaram o ensino médio chega a 46%.

— Para elas, não há futuro — diz Myburgh, que é branco, destacando, no entanto, que muitos negros ascenderam de posição após o apartheid. — A porcentagem de negros que conseguiu subir a escada de riqueza é impressionante. E se, proporcionalmente, os brancos ainda controlam mais o dinheiro, isso está mudando por vários motivos, inclusive graças à política de Empoderamento Econômico Negro do governo.

Enquanto lida com a tentativa de promover mais igualdade entre as classes sociais, o presidente Cyril Ramaphosa enfrenta grandes problemas nas áreas de saúde e segurança — com altas taxas de criminalidade e violência. Além do desemprego, a crise de eletricidade deixa a população às escuras em sucessivos apagões. Corrupção, infraestrutura inadequada e falta de investimentos na educação estão entre as principais queixas das pessoas que conversaram com a reportagem do GLOBO.

Neste cenário, a eleição presidencial marcada para o dia 29 de maio chega em um momento delicado para Ramaphosa, que busca a reeleição. Pesquisas recentes mostram que o CNA corre o risco de perder a maioria no Parlamento pela primeira vez desde que chegou ao poder.

Segundo os números, o partido deve ficar abaixo dos 50% dos votos, o que forçaria uma coligação com a oposição para manter no cargo Ramaphosa, alvo de uma CPI que quase lhe custou o mandato por denúncias de corrupção. O principal partido opositor é o Aliança Democrática, de orientação liberal, maior crítico do CNA.

O ativista e ex-líder sindical apoiado por Mandela até sua morte, em 2013, é hoje um dos empresários mais ricos do país. Ganhou a confiança dos sul-africanos e foi eleito em 2018 com um duro discurso de combate à corrupção em contraponto aos escândalos que mancharam o mandato de seu antecessor, Jacob Zuma, hoje impedido de concorrer nas eleições por ser “ficha suja”.

Com um sistema semiparlamentarista, as eleições funcionam de forma distrital: os sul-africanos votam, a cada cinco anos, em uma legenda e não em um candidato. Após a votação, são atribuídos aos partidos assentos nas 400 cadeiras do Parlamento que, em seguida, elege o presidente — que é chefe de Estado e de governo ao mesmo tempo. Um sistema que nas últimas três décadas favoreceu o CNA. Pelo menos até agora.

(O repórter viajou a convite da South África Tourism e Latam)

Fonte: O Globo

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