Humoristas driblam repressão para fazer rir na Venezuela de Maduro

O humorista venezuelano Juan Carlos El Rojo
O humorista venezuelano Juan Carlos El Rojo — Foto: Elianah Jorge

A repressão vem mudando o foco das piadas feitas pelos humoristas na Venezuela. Eles podem fazer rir, desde que não mirem personalidades do chavismo e temas sensíveis à política nacional. E quem sai da linha, seja no palco ou nas redes sociais, provavelmente vai sofrer represálias. Para proteger a família e a própria pele, alguns humoristas decidiram sair do país ou baixar o tom. O mesmo filtro, no entanto, não é aplicado ao governo, que tem carta branca para debochar de personalidades da oposição.

— A ressalva que faço, para afastar o medo, é dizer ao público que não filme o que vem a seguir, só para garantir — explica Juan Carlos El Rojo (apelidado assim graças aos longos cabelos ruivos) sobre a limitada brecha que abre para contar piadas políticas em suas apresentações em Caracas.

El Rojo teme que alguma alfinetada sobre a realidade venezuelana vá parar nas redes sociais, chegue às autoridades e cause consequências desagradáveis. O comediante adentrou o mundo do stand-up na Venezuela há sete anos, um mercado minguado que ainda dista da pujança dos R$ 180 milhões que a indústria move no Brasil. E vem percebendo mudanças na recepção do público às piadas:

— Quando comecei, contar piadas políticas já era um tema esgotado, parecia um assunto chato. Hoje percebo do público um pouco de espanto. Tipo: ‘Uau, que ousado dizer isso em voz alta!’. É uma espécie de susto com nervosismo e risos. Uma mistura de emoções.

Rojo é um dos poucos dentro da Venezuela que ainda fazem humor político. Mas fora do país muitos outros investem no nicho. É o caso do ator, apresentador e humorista Luis Chataing. Referência do rádio e TV venezuelanos, ele decidiu abraçar o tema em 1999, com a chegada do presidente Hugo Chávez, que morreu em 2013, ao poder.

Com o agravamento da crise econômica e política no país, em 2016 se mudou com a família para os EUA, onde agora se apresenta aos mais de 465 mil conterrâneos da diáspora venezuelana. Mesmo longe, se inspira nas notícias locais para levar humor, através das redes sociais, aos seus 4,5 milhões de seguidores.

— O humor é de oposição. O humor político existe para apontar erros, para encontrar brechas, para fazer pensar. Há comediantes que, longe de provocarem risos, o que conseguem é causar silêncios profundos que fazem as pessoas perceberem o que está acontecendo — diz ele, que tem 32 anos de carreira.

Apesar das alfinetadas aos políticos nesses 25 anos de chavismo no poder, Chataing afirma nunca ter sofrido ameaças diretas. Mas em 2004, quando o governo promulgou a Lei de Responsabilidade Social em Rádio e TV, os meios onde Chataing trabalhava ou os anunciantes de seus programas começaram a receber pedidos para o artista baixar o tom nas piadas e comentários políticos.

Os comediantes Reuben Morales e Napoleón Rivero não tiveram a mesma sorte. Por anos ambos trabalharam no icônico programa humorístico “Rádio Rochela”, exibido na extinta Rádio Caracas Televisão — fechada em 2007 após Chávez não renovar a concessão do canal.

A verve do humor continuou em Bogotá, na vizinha Colômbia, para onde se mudaram em meados de 2017. Lá, criaram um programa de paródias, mas os temas das esquetes e os apelidos dados a figurões não agradaram ao governo. Em setembro de 2021, familiares de Morales e de Rivero receberam a visita do Corpo de Investigações Científicas, Penais e Criminalísticas (CICPC) — na ocasião, a mãe idosa de Rivero estava sozinha em casa.

Já a cunhada de Morales foi levada à delegacia para dar explicações sobre os comediantes. Tanto Morales quanto Rivero não podem voltar ao país: os dois têm ordem de captura e são acusados de instigação ao ódio e crimes informáticos.

— O humor político venezuelano está se precavendo. A única maneira de continuar é fazê-lo de forma clandestina e sem que haja familiares no país — diz Rivero.

A falta de liberdade motivou outros humoristas a saírem da Venezuela. O mais famoso é George Harris.

— É que, além de petróleo, agora a Venezuela exporta humoristas — brinca Morales.

Advogado e comediante, Gustavo Briceño ressalta que “se tem algo que os regimes totalitários temem é a liberdade: que as pessoas pensem e possam expressar o que pensam”.

— Isso para eles causa muito medo. Por isso, atacam o direito de dizer as coisas. A Lei Antifascismo é para calar as pessoas — ressalta, em referência à lei aprovada em primeira instância pela vice-presidente Delcy Rodríguez e que agora vai à sanção de Maduro.

Outra forma de repreender a livre expressão é através da aplicação de multas altíssimas. Foi o caso do diário Tal Cual, que em 2005 publicou “Querida Rosinés”, texto no qual o humorista e analista político Laureano Márquez pedia à filha mais nova de Chávez que falasse com o pai porque sobre determinado assunto “provavelmente é a única pessoa a quem ele escuta com atenção”.

O Conselho da Criança e o Ministério Público consideraram que o texto “violou a intimidade, privacidade e a integridade” da herdeira de Chávez, que à época era menor de idade. O artigo humorístico rendeu uma penalidade milionária ao jornal, que recorreu a doações para pagá-la.

E não precisa ser humorista para levar um pito estatal. Um homem que preferiu não se identificar conta que chegou a ficar três dias preso por publicar memes de um figurão da política local abraçando o narcotraficante colombiano Pablo Escobar, e outro de um ex-governador agarrado a uma garrafa de rum. Ele estava com a esposa e os filhos quando o CICPC chegou, revistou sua casa e o levou algemado.

— Eles estão praticamente nos isolando, tirando o nosso direito de falar, de discernir, de discordar. Estamos trancados aqui na Venezuela, onde a liberdade de expressão não existe — desabafa a socióloga Leida García.

Com a cara feia do governo às piadas de cunho político, restou aos comediantes recorrer a temas triviais. Nos últimos anos, o humor passou a abordar questões amorosas, de costumes ou a rivalidade entre equipes de beisebol, o esporte nacional.

— Em um país tão complexo, recorrer ao humor é uma forma de drenar a tensão, rir dos nossos próprios problemas. É saudável — explica o psicólogo Rodolfo Romero.

O próprio Reuben Morales, que já se apresentou em mais de dez países, decidiu se afastar do humor político e trabalhar com temas atemporais. Para ele, “o humor político praticamente desapareceu”:

— Vejo colegas fazendo certo tipo de publicação e digo: ‘Não vale a pena se arriscar’. Vai dar visibilidade, mas as consequências são graves.

Há também quem tenha optado por outras vias. No fio da balança entre humor e poder, o comediante Benjamín Rausseo, mais conhecido como El Conde del Guácharo, disputará a faixa presidencial com Nicolás Maduro na eleição programada para ocorrerem em 28 de julho. De acordo as pesquisas, no entanto, Rausseo tem hoje menos de 2% das intenções de votos.

Para o sociólogo Erly Ruiz o recrudescimento da repressão a comediantes indica que “de alguma maneira estão negando a própria identidade venezuelana”. O advogado Alí Daniels, que dirige a ONG Acesso à Justiça, concorda:

— Querem nos reduzir a uma sociedade sem riso. O humor é um ato social. Não é a mesma coisa rir sozinho e rir acompanhado. Há que lutar pela nossa liberdade ainda que seja rindo — conclui.

Fonte: O Globo

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