Homem, com ensino médio e do agro: recadastramento de CACs revela perfil do atirador amador no Brasil

Atirador esportivo em clube de tiro na cidade de São Paulo
Atirador esportivo em clube de tiro na cidade de São Paulo — Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

O empresário catarinense Thiago Barboza, de 41 anos, deu seu primeiro tiro num estande a convite de um amigo. Gostou tanto que decidiu fazer parte desse mundo. Nos clubes de Florianópolis, Barboza encontrou um lugar para “desestressar”. Aos poucos, foi levando a mulher e o casal de filhos de 6 e 8 anos para curtir o clube. Tirou sua carteirinha de Caçador, Atirador e Colecionador (CAC) junto ao Exército Brasileiro em agosto de 2022.

— Para mim, é uma terapia, um lugar onde esqueço de tudo. Ainda trabalho nível de concentração, segurança e hierarquia — conta.

Barboza se encaixa no perfil do público que, encorajado pela flexibilização do acesso às armas do governo Bolsonaro, pleiteou um registro de CAC. O predomínio é de homens (97%), casados (62%), com ensinos médio (34,1%) e superior (33,3%) e moradores das regiões Centro-Oeste e Sul, segundo a Polícia Federal. Os dados são baseados no recadastramento das 962.782 armas adquiridas no país depois de 2019, medida prevista no decreto do governo Lula que restringiu o acesso incentivado pelo antecessor. As profissões mais armadas são administrador (13,6%), comerciante varejista (7,5%) e produtor agropecuário (6,7%).

Um cruzamento do número de armas por município com suas populações feito pelo GLOBO mostrou maior concentração em áreas dominadas pelo agronegócio, principalmente a pecuária. Os locais com mais armamento de CACs são o Sul de Goiás, nas regiões de Rio Verde e Jataí; o Leste do Mato Grosso, no entorno do Parque do Xingu; todo o Norte gaúcho; e o interior de Santa Catarina e Paraná. Clevelândia (PR) é a campeã da lista: há uma arma para cada 15 moradores.

Em quatro anos, o número de brasileiros que tiraram o certificado de CAC mais que sextuplicou, passando de 117.467, em 2018, para 783.385 no final de 2022. O policial federal Roberto Uchôa, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que o perfil deles mudou. O ponto de virada, acredita, foi 2017, no governo Temer, com a publicação de uma portaria do Exército que regulamentou o porte de trânsito.

— Até aquele ano, eram os esportistas de fato que frequentavam os clubes. Esse público que chega depois quer o porte de trânsito. As pessoas começam a virar CAC porque querem andar armadas — afirma Uchôa, autor do livro “Armas para quem”, resultado de uma pesquisa sobre clubes de tiros e seus frequentadores.

Até 2003, qualquer brasileiro com mais de 21 anos podia ir a bares, shoppings, parques e teatros com uma arma. Com a aprovação do Estatuto do Desarmamento, o porte foi proibido para civis, com exceções para poucas categorias profissionais. Com a portaria do governo Temer, a categoria ganhou o direito de se deslocar de casa até o clube ou competição com a arma municiada e pronta. CACs aproveitaram a dificuldade de comprovação do trajeto para andarem armados, e clubes de tiros pipocaram pelo Brasil.

A popularização da categoria, diz Uchôa, criou um mal-estar entre a velha guarda do tiro e os novatos. O pesquisador destaca que os recém-chegados têm um poder aquisitivo menor, porque os preços para praticar tiro ficaram mais baratos, e são mais ideologizados.

— Por volta de 2018, começa a chegar uma turma com camiseta do Brasil, falando em Bolsonaro — observa.

O advogado Barboza considera que atirar exige a mesma disciplina de um exercício de malhação:

— No clube, encontro pessoas com uma certa cultura, com alguma profissão bem definida na vida. É outro relacionamento.

O empresário Alexsandro de Godoy, de 51 anos, morador de Campo Largo, na Região Metropolitana de Curitiba, comprou a primeira arma há 30 anos, no balcão da Mesbla. Casado e pai de duas filhas, tem licença de autodefesa pela Polícia Federal. Ao ter negado o pedido de uma segunda arma para proteger um segundo estabelecimento onde trabalhava, tirou a licença de CAC, em 2020. A partir daí, comprou duas pistolas 380, um revólver 44 Magnum e uma pistola 9mm — o calibre favorito, segundo o recadastramento.

— Comecei a participar de competições, de treinamentos, e comprei mais para ter opção para competir — justificou Godoy.

Outro empresário, Paulo Roberto Brandão, de 38 anos, tem familiaridade com as armas desde que vivia na Suécia e se apaixonou pela caça. Ao retornar ao Brasil, tornar-se CAC foi natural, diz. A decisão de tirar a carteirinha se deu pelo esporte, mas ele diz ser totalmente favorável ao uso para a legítima defesa:

— Se alguém vier te assaltar, a polícia não vai chegar. Ninguém vai se defender com um garfo. Com esse novo decreto (que proibiu o porte de trânsito com a arma municiada), todo mundo está vulnerável. Agora tenho de carregar a minha arma numa caixa.

Fonte: O Globo

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