Guerra em Gaza, 6 meses: Brasileiro que sobreviveu a ataque do Hamas e palestino repatriado reclamam de falta de assistência

Brasileiro Rafael Zimerman (E) sobreviveu ao ataque do grupo terrorista Hamas em Gaza; família de Mohammad Farahat (D) vivenciou bombardeios em Gaza e foi repatriada no Brasil
Brasileiro Rafael Zimerman (E) sobreviveu ao ataque do grupo terrorista Hamas em Gaza; família de Mohammad Farahat (D) vivenciou bombardeios em Gaza e foi repatriada no Brasil — Foto: Edilson Dantas

“Eu vi o maior ódio do mundo” e “senti que ia morrer a qualquer momento”. As duas falas, embora semelhantes, foram relatadas ao GLOBO por dois sobreviventes de lados distintos da guerra em Gaza, que completa seis meses neste domingo — e ainda parece estar longe de acabar. No primeiro depoimento, o brasileiro Rafael Zimerman, de 28 anos, definiu o que sentiu ao ficar cinco horas preso num bunker atacado pelo grupo terrorista Hamas em Israel. Já no segundo, o palestino Mohammad Farahat, repatriado no Brasil desde novembro, relembrou como foi viver sob intensos bombardeios que destruíram sua casa. Hoje, ambos reclamam da postura do governo brasileiro, seja pela parcialidade ao lidar com as vítimas do conflito ou por “promessas não cumpridas”.

Zimerman estava na edição israelense do festival Universo Paralello em 7 de outubro quando os sinais da invasão começaram. Em busca de um espaço seguro, ele decidiu abrigar-se em um bunker próximo. O local, projetado para cerca de 15 pessoas, acumulou mais de 40. Dessas, apenas nove sobreviveram. Ele disse ter fingido que estava morto enquanto terroristas atiravam e jogavam granadas, coquetel molotov e gás dentro da construção. Naquele momento, Zimerman afirmou ter entendido que iria morrer, e até desejado que isso acontecesse. Ao lado dele estavam os brasileiros Rafaela Treistman e Ranani Glazer, morto após o ataque.

— Eu ouvia os terroristas rindo e fiquei deitado, fingindo que estava morto. Enquanto eles atiravam, gritavam Allahu Akbar (Deus é Grande). Tenho isso gravado na minha cabeça — contou Zimerman ao GLOBO. — Mas, para mim, quando tentaram matar a gente com gás foi a pior coisa. Eu não conseguia respirar. Desmaiei e, quando acordei, já tinham muitos corpos. Fui me rastejando por cima deles até que senti o ar. Fiz xixi de alívio só por estar respirando, e uma pessoa veio falando algo que não consegui entender. Olhei para ela e respondi: ‘quero morrer’.

A pessoa era, na verdade, um israelense que havia saído do bunker pouco antes do ataque. Ele ficou escondido do lado de fora até os integrantes do Hamas irem embora e um carro da polícia passar. Após pedir ajuda, ele voltou ao local para ver se havia algum sobrevivente e achou Zimerman. O brasileiro, então, saiu de onde estava e viu uma fogueira de pessoas. Segundo ele, terroristas pegaram jovens que buscaram abrigo no bunker e os colocaram no fogo enquanto eles estavam vivos. Ao fundo, Zimerman ainda conseguia ouvir o tiroteio, desta vez mais distante.

— De marcas físicas eu tenho um estilhaço de granada e uma mordida. No meio disso tudo, uma menina entrou em colapso e me mordeu. Até hoje, seis meses depois, eu tenho essa marca. Graças a Deus, não tive mais nada — disse. — Foi o maior inferno da minha vida, mas eu falei para mim mesmo que não deixaria o trauma me paralisar. Não vou dizer que não choro todos os dias, mas tenho que voltar a ser o que eu era. Hoje faço palestras pelo Brasil e também sou acompanhado por um psicólogo israelense focado em pós-trauma.

Na Faixa de Gaza, Farahat não imaginava que a guerra teria início em 7 de outubro, tampouco podia esperar pela dimensão da resposta israelense. Ele afirmou ter sentido que vivia um “sonho surreal” na medida em que a intensidade dos bombardeios aumentava. Já na primeira semana do conflito, sua casa foi destruída por um ataque aéreo. Ao lado da esposa, que tem nacionalidade brasileira, e dos quatro filhos, ele decidiu sair do local por medo, já que outras construções ao redor tinham sido atingidas durante a madrugada. Devido aos perigos crescentes, a família do palestino foi deslocada cinco vezes dentro do enclave antes de conseguir a repatriação no Brasil.

— Bombas caíam nas casas ao redor, que eram muito próximas da nossa. Bombardeios constantes faziam a terra tremer a cada duas horas. Foi um tormento inimaginável — relembrou ao GLOBO. — Agradeço a Deus por termos saído de casa naquele dia, porque não tivemos aviso prévio [do ataque] de Israel. A constante ameaça de bombardeios deixava crianças e adultos em estado constante de medo. A vida se tornou difícil, com falta de perspectiva e de segurança. Parecia não haver lugar seguro em Gaza. Você sente que vai morrer a qualquer momento.

Farahat é uma das 1,5 mil pessoas que vieram de Israel ou de Gaza para o Brasil na missão Voltando em Paz, organizada pelo governo federal. Ele e sua família foram direcionados para o abrigo Vila Minha Pátria, em Morungaba, zona rural de São Paulo. Apesar de reconhecer que hoje está em melhores condições, o palestino diz que enfrenta estresse psicológico e social, especialmente porque o restante de sua família ainda está no enclave. Lá, ressaltou, eles podem “ser mortos ou atacados por israelenses”, e sofrem com a falta de alimentos e remédios, cenário que ele descreveu como “catastrófico”.

Já no Brasil, embora ele reconheça a generosidade dos organizadores do abrigo, o palestino reclamou que o espaço habitacional fornecido é “pequeno e está em péssimas condições”. Ao todo, os seis membros de sua família compartilham o mesmo quarto. A direção do local não deixou o GLOBO fotografar o cômodo, justificando que ele estaria “feio” e “passando por reformas”. A situação é, para Farahat, “frustrante”, já que antes de decidir vir ao país ele havia questionado o governo brasileiro sobre a garantia de um abrigo com condições para reconstruir sua vida.

— Quando ainda estávamos em Gaza, a embaixada compartilhou comigo um vídeo mostrando o abrigo. Com base nessas informações, aceitei a oferta e tomamos a decisão de deixar Gaza. No entanto, quando chegamos na Vila Minha Pátria, a realidade foi diferente da mostrada no vídeo, onde as únicas coisas visíveis eram as áreas verdes e espaços que pareciam atraentes. No abrigo, temos comida e aulas de português, mas, por ser longe do centro de São Paulo, é difícil conseguir um emprego, e o transporte é desafiador. Duvido que o governo nos apoie nessa questão.

Nascido em São Paulo, Zimerman morou em Israel por cinco meses antes do atentado. Três semanas depois do ocorrido, ele voltou ao Brasil num voo da Força Aérea Brasileira (FAB) e disse ter sentido, em um primeiro momento, o amor da família e amigos. Em pouco tempo, porém, a sensação passou a dividir espaço com o medo. Na capital paulista, ele relatou ter sofrido um ataque antissemita. Zimerman estava em uma festa com os amigos quando um homem, que ouviu ele falar de Israel, se aproximou e disse desejar a morte de todos os judeus.

— Do outro lado do mundo eu sobrevivi a um ataque terrorista, e no Brasil, que é onde eu nasci e vivi a vida inteira, não me senti seguro por ser quem eu sou — afirmou. — Em Israel, o governo me ajuda até hoje. Eles querem saber como eu estou, psicologicamente e financeiramente. Já no Brasil, não tive ajuda de nenhum órgão público. Me chocou que o presidente não esteve em nenhum dos voos de repatriados de Israel. Isso me doeu bastante porque é o meu país. É, inclusive, o governo que eu escolhi para mim. E ele não me estendeu a mão de volta. Senti como se eu fosse descartável. Nosso presidente escolheu um lado.

Farahat, por sua vez, disse lembrar do dia em que chegou em Brasília e foi recebido no aeroporto pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ele afirmou que todos o trataram com gentileza, mas que representantes do governo “fizeram promessas que não foram cumpridas”. Hoje, ele recebe R$ 600 de Bolsa Família, e seus filhos estão matriculados em escolas públicas, ainda que sintam dificuldades com o idioma e não tenham recebido livros didáticos. A instituição recomendou a compra de materiais adicionais, mas ele afirmou não possuir a renda necessária.

— Eu sempre os encorajo a ler e estudar, enfatizando a importância de dominar o português para viver aqui no Brasil. Há uma necessidade urgente de roupas e material escolar, além do dinheiro para as despesas escolares. Meus filhos precisam de celulares para ajudar na tradução do português para o árabe e entender o conteúdo das lições, mas não temos recursos para comprá-los. Me esforço para ajudá-los, mas esses são alguns dos desafios — ressaltou. — Além disso, não recebemos o apoio psicológico esperado. O suporte foi oferecido nas duas primeiras semanas aqui, mas não houve acompanhamento.

A insatisfação com a postura do governo é compartilhada por Mary Shohat, irmã do brasileiro Michel Nisenbaum, tido como refém do Hamas em Gaza. Ao GLOBO, ela afirmou não ter recebido notícias da administração brasileira, mesmo após ter conversado com Lula em dezembro. Na ocasião, o petista prometeu tentar falar com o Egito e com a Cruz Vermelha para que Nisenbaum recebesse medicamentos, já que ele tem a Doença de Crohn. Agora, Mary disse que sua família está “cada dia pior” por não saber se o irmão está “ferido, vivo ou morto”.

— É muito importante que as pessoas saibam que estamos aqui, e que estamos esperando que os nossos queridos voltem para as suas casas — disse ela, em referência aos cerca de 130 reféns que permanecem em Gaza desde o início da guerra.

O casal de palestinos Ronza e Akram Abujayyab vive no Brasil desde agosto de 2022. Refugiados, ambos viveram a guerra de 2014 no enclave — até então a mais brutal no território. Há seis meses, os dois também temem pela vida de seus familiares, com quem é difícil manter contato devido à interrupção contínua da internet. Ronza, que é engenheira, comentou que a escala de destruição é grande em Gaza, mas que acredita que ainda haverá outras guerras na região no futuro, inclusive para reconstruir a vida no local. Há quatro meses, ela tenta trazer os familiares para São Paulo, onde vive atualmente, mas disse não ter recebido retorno dos ministérios da Justiça e das Relações Exteriores.

— [Depois da guerra] haverá muitos desafios para o povo palestino em Gaza, mas confio em na nossa capacidade de superá-los — destacou Ronza. — Já quanto ao impacto psicológico dos horrores desse massacre genocida testemunhado por indivíduos, especialmente pelas crianças, não será facilmente recuperado. Levará anos para uma recuperação, se é que um dia poderão se recuperar.

Em nota, o Ministério da Justiça e Segurança Pública disse que “o Estado brasileiro continua seus esforços no sentido de permitir a saída dos familiares de brasileiros que ainda estão na Faixa de Gaza. Tais esforços são coordenados pelo Itamaraty e acompanhados pelo Ministério”, e que “os brasileiros retornados e os migrantes que aqui estão, independentemente de sua condição migratória, podem acessar as políticas públicas disponibilizadas em sua localidade, observados os critérios de cada uma delas, tal como os demais brasileiros”.

Procurados pelo GLOBO, os ministérios das Relações Exteriores, do Desenvolvimento Social e dos Direitos Humanos e Cidadania não comentaram o assunto até a última atualização deste texto.

Fonte: O Globo

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