Guerra (eletrônica) da Ucrânia: Entenda por que a Rússia está interferindo no sinal de GPS no Norte da Europa

Um avião da Finnair no aeroporto de Helsinque, Finlândia
Um avião da Finnair no aeroporto de Helsinque, Finlândia — Foto: Setala/Bloomberg/ 11-04-2012

O GPS não é mais confiável nas proximidades do Mar Báltico e no norte da Noruega. A interferência no sistema de posicionamento global, que tem afetado todos os membros da Otan — a aliança militar ocidental comandada pelos Estados Unidos — que fazem fronteira com a Rússia nos últimos dois anos, piorou nos últimos meses. Dezenas de milhares de voos tiveram que ativar sistemas alternativos ao GPS, e a principal companhia aérea da Finlândia suspendeu uma de suas rotas devido a um problema que também interrompeu a navegação marítima. Vários dos países afetados acusam Moscou de alterar intencionalmente os sinais com seus sistemas de guerra eletrônica.

Desde a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022, a interferência do GPS tem sido recorrente em Estônia, Letônia e Lituânia. Essas interrupções são comuns em zonas de conflito e em seus arredores. Mesmo assim, no último semestre, o espaço aéreo dos três países bálticos — além de Finlândia, Suécia e Polônia — foi muito mais afetado do que no início da guerra. Além disso, milhares de navios navegaram no Báltico sem sinais de GPS desde dezembro, mês em que as Forças Armadas russas iniciaram exercícios de guerra eletrônica no enclave de Kaliningrado. E no remoto nordeste da Noruega, próximo à base da Frota do Norte — onde estão oito dos 11 submarinos russos capazes de lançar mísseis nucleares de longo alcance — as interrupções são quase diárias.

Na semana passada, dois aviões da Finnair tiveram que dar meia-volta e retornar a Helsinque depois de não conseguirem se aproximar do aeroporto de Tartu, na Estônia. A companhia aérea suspendeu a rota entre a capital finlandesa e a segunda cidade mais populosa da Estônia. Ao contrário da grande maioria dos aeroportos europeus, o aeroporto de Tartu só recebe aterrissagens com um sinal de GPS. Lauri Soini, presidente da Associação Finlandesa de Pilotos, disse à Reuters que, nos últimos seis meses, a interferência “vem afetando áreas maiores e até mesmo altitudes mais baixas”.

Margus Tsakhna, ministro das Relações Exteriores da Estônia, reagiu aos cancelamentos de voos com uma publicação na rede social X (antigo Twitter), na qual culpou a Rússia. Tsakhna acrescentou que havia acabado de falar com seus colegas letão, lituano, finlandês e sueco e pediu que o assunto fosse discutido entre todos os aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte e membros da União Europeia (UE). Em entrevista ao jornal britânico Financial Times, o ministro descreveu a interferência como “ações hostis da Rússia” e “ataques híbridos”.

A perda do sinal de GPS em pleno voo não representa, em princípio, um risco grave. As aeronaves comerciais têm vários sistemas alternativos mais antigos. Entretanto, Dana Goward, diretora da Fundação para Navegação Resiliente e Controle de Tempo e membro de um conselho consultivo do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, argumenta por telefone que o bloqueio “inevitavelmente reduz a segurança e a eficiência da aviação”. Segundo ela, “o risco de um acidente aumentou” nos últimos meses e a Rússia tem vários tipos de sistemas de guerra eletrônica que podem interromper o sinal de GPS de várias altitudes ou distâncias.

Além da interferência, recentemente houve um aumento significativo de spoofing, prática em que um dispositivo transmite um sinal análogo ao sinal do satélite, mas com maior potência, para enganar o receptor, que recebe variáveis errôneas de posição ou tempo.

Todd Walter, diretor do Laboratório de GPS da Universidade de Stanford, nos EUA, descreve em uma chamada de vídeo o complexo processo de tentar identificar os pontos exatos a partir dos quais a interferência é gerada:

— Nossas estimativas nunca serão totalmente precisas, mas tudo indica que o foco das interrupções no Báltico está em Kaliningrado.

No nordeste da Noruega, a milhares de quilômetros de distância da frente de guerra, as autoridades estão tentando se adaptar à vida sem GPS. Desde janeiro de 2023, a interferência foi registrada em mais de 95% dos dias. Ocasionalmente, no nível do mar, alguns cidadãos perderam o sinal de seus telefones celulares ou receberam um com a posição errada. A Autoridade Norueguesa de Comunicações afirma que, em altitudes acima de 1.500 metros, a interferência é intermitente e, acima de 3.000 metros, é quase contínua. Além de milhares de voos internos, os helicópteros utilizados como ambulância, que prestam um serviço essencial em uma das áreas menos densamente povoadas da Europa, também são afetados.

Embora a guerra na Ucrânia tenha dinamitado as relações entre a Noruega e a Rússia, ainda são realizadas reuniões regulares para discutir questões de fronteira. Em uma dessas reuniões, Ellen Katrine Haetta, chefe de polícia da região de Finnmark, detalhou os riscos que a interferência representa para as operações de busca e resgate.

— Isso é muito sério. Vidas humanas podem ser perdidas — disse Haetta à mídia local. — O FSB [Serviço Federal de Segurança russo] me disse que investigará o assunto.

No Báltico, a navegação por GPS no mar é cada vez mais rara e, devido aos riscos envolvidos, as seguradoras aumentaram seus preços. O tenente-coronel Joakim Paasikivi, membro da Universidade de Defesa da Suécia, disse à emissora pública do país que as interrupções na navegação marítima eram um produto da “guerra híbrida da Rússia contra os membros da Otan”.

Um porta-voz do Ministério da Defesa da Alemanha disse, no final de abril, que as “interrupções persistentes” do sinal de GPS “provavelmente são de origem russa”, tendo como alvo específico Kaliningrado, o território russo encravado entre a Polônia, a Lituânia e o Mar Báltico. Em março, um avião que transportava Grant Shapps, o ministro da Defesa britânico, teve que ativar sistemas alternativos ao de posicionamento global para passar por uma área próxima ao enclave russo. Na Polônia, em 25 e 26 de dezembro, o bloqueio durou mais de 30 horas e se espalhou por grande parte do país.

A Rússia tem poderosos sistemas de guerra eletrônica. Vários relatórios do Centro de Estudos Avançados de Defesa, com sede em Washington, detalham as extensas campanhas de spoofing realizadas pelos militares russos a partir de várias bases que controlam na Síria. O centro de análise sediado em Washington também observa que, quando o presidente Vladimir Putin viajou para áreas ocupadas da Ucrânia, como a Península da Crimeia ou a cidade de Mariupol, ele o fez ladeado por sistemas móveis de guerra eletrônica. Em 2018, durante os exercícios da Otan no norte da Noruega, que também envolveram soldados da Suécia e da Finlândia — embora ainda não fossem membros da aliança ocidental — Oslo e Helsinque acusaram Moscou de interromper o sinal de GPS em partes de seu território.

Os sistemas de guerra eletrônica russos são usados diariamente na Ucrânia para bloquear as comunicações de drones inimigos e até mesmo desviar a trajetória dos mísseis Himars dos EUA. Os militares russos também anulam recorrentemente o sinal de GPS ao redor de Moscou e São Petersburgo, ou em regiões distantes da fronteira, onde refinarias foram atacadas por drones ucranianos. As interrupções também são comuns em torno do Mar Negro, onde drones aquáticos ucranianos atingiram repetidamente embarcações navais russas.

No final de janeiro, a Agência Europeia para a Segurança da Aviação (Easa, na sigla original) e a Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata) realizaram uma reunião na cidade alemã de Colônia para tratar dos casos crescentes de interferência e falsificação. Em uma declaração conjunta, afirmaram que os problemas com GPS “representam sérios desafios para a segurança da aviação” e, na ausência de soluções técnicas viáveis em curto prazo, pediram um melhor treinamento dos pilotos para resolver os contratempos.

Martin Herem, comandante das Forças Armadas da Estônia, argumentou em uma entrevista recente a um meio de comunicação local que “a Rússia está experimentando seus poderosos sistemas de guerra eletrônica” para “testar a Otan contra o risco de uma futura guerra” com a aliança. Tanto Goward quanto Walter consideram a hipótese de Herem razoável e ambos afirmam não terem dúvidas de que pelo menos parte da interferência no Báltico é claramente intencional.

Fonte: O Globo

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