Governo Milei enfrenta manifestação gigantesca em defesa da educação pública

Manifestação em defesa da educação pública em Buenos Aires
Manifestação em defesa da educação pública em Buenos Aires — Foto: Luis Robayo/AFP

As principais cidades argentinas foram cenário nesta terça-feira de grandes manifestações em defesa da educação pública, em momentos em que as mais de 40 universidades estatais do país estão em situação crítica pela decisão da Casa Rosada de não ajustar seus orçamentos num ritmo similar ao da inflação. Entre março deste ano e o mesmo mês do ano passado o aumento de preços internos foi de 287,9% (herança do governo de Alberto Fernández), e no primeiro trimestre de 2024 as universidades receberam o mesmo orçamento que em 2023 ou, em alguns casos, até menor. Na véspera das marchas o presidente Javier Milei fez um pronunciamento ao país no qual comemorou o resultado das medidas de ajuste fiscal e, em suas próprias palavras, “a atitude heroica dos argentinos”.

Os cortes implementados por Milei fazem parte do programa do governo para equilibrar as contas públicas e alcançar o superávit fiscal, após décadas de governos que gastaram mais do que arrecadavam — seu antecessor entregou um Estado falido. Como parte desse plano, já foram demitidos mais de 15 mil servidores e reduzidos diversos orçamentos do Estado, afetando não apenas as universidades, mas, também, despesas em matéria de saúde e cultura, entre outras.

— A era do suposto Estado presente terminou. Foi um fracasso rotundo — declarou o chefe de Estado na noite de segunda-feira.

A gigantesca e histórica manifestação em Buenos Aires — da qual participaram importantes universidades privadas do país — foi considerada uma ação política por parte do governo, pela participação de dirigentes opositores, entre eles o ex-candidato presidencial peronista Sergio Massa. A marcha não foi política, como acusou o governo, mas contou com a participaram de setores políticos e movimentos sociais, entre eles as Mães e Avós da Praça de Maio, tradicionalmente vinculadas ao kirchnerismo.

— Perdemos uma eleição, mas não fomos derrotados e não podemos nos render. Vocês têm de fazer o que as Mães fazemos há 47 anos, a única luta que se perde é a que se abandona — disse Taty Almeida, ativista das Mães da Praça de Maio.

Mas nas ruas da capital argentina o que mais se viu foram alunos, professores, trabalhadores das universidades e pessoas já formadas e com filhos e netos que estudam em universidades públicas.

As ruas do centro da cidade ficaram lotadas de manifestantes carregando bandeiras da Argentina e cartazes com mensagens em defesa da educação pública. Lemas de adversários políticos de Milei estiveram ausentes.

— Os estudantes não somos a casta [política], precisamos de recursos para estudar — disse Alejandra Romero, que está no segundo ano da carreira de arquitetura da Universidade Nacional de Buenos Aires (UBA), a mais importante do país e com prestígio e reconhecimento regional e mundial.

Ao seu lado, Nicolás Fernández, estudante de Farmácia da UBA fez um alerta:

— Nossos laboratórios estão sem recursos, não podemos fazer pesquisas. Algumas matérias correm o risco de não poderem ser dadas no segundo semestre do ano por falta de dinheiro—.

De acordo com estudo da Associação Argentina de Orçamento e Administração Financeira Pública (Asap, na sigla em espanhol), no primeiro trimestre deste ano as remessas às universidades públicas caíram entre 30% e 35% em relação ao mesmo período do ano passado.

O porta-voz do governo, Manuel Adorni, afirmou que a manifestação teve intenções “políticas”, e confirmou um aumento de 70% dos orçamentos universitários em março. No entanto, autoridades universitárias negam que o governo tenha destinado mais recursos à educação pública. Em meio às controvérsias, a ministra do Capital Humano, Sandra Pettovello, perdeu um novo funcionário de sua confiança, o agora ex-secretário de Coordenação Legal e Administrativa, Maximiliano Keczeli, que renunciou ao cargo no dia das manifestações, sem dar explicações.

Pettovello já perdeu outros membros de sua equipe em meio a tensões com movimentos sociais, que denunciaram a redução de recursos para refeitórios populares. A tensões pelo impacto negativo da serra elétrica de Milei é cada vez maiores, e a reação das universidades abriu uma frente de conflito delicada para o presidente argentino, que já deixou bem claro o que pensa da educação pública:

— Um mecanismo de lavagem cerebral.

Entre estudantes e professores de universidades estatais as palavras de Milei num discurso numa escola privada no início de março causaram estupor. A organização da gigantesca marcha em defesa da educação pública mostrou ao presidente argentino que sua posição será resistida nas ruas, e com veemência.

Nas sedes das faculdades da UBA, em Buenos Aires, se multiplicaram os cartazes em repúdio aos cortes de Milei. “A ciência não é cara, cara é a ignorância”, diz um desses cartazes, na Faculdade de Ciências Exatas da UBA, na qual foi colocado um relógio mostrando por quanto tempo o atual orçamento conseguirá cobrir as necessidades de financiamento da faculdade.

— Sou estudante de Biologia e na minha faculdade os recursos não são mais suficientes para manter nossos laboratórios e nossas pesquisas — conta Nahuel Rodriguez.

Em outras universidades, como a de San Martín, na Grande Buenos Aires, a situação também é complexa. Os professores, comentou um deles, devem levar seu próprio papel higiênico e limpar seus escritórios. De acordo com Oscar Valpa, vice-presidente do Conselho Interuniversitário Nacional (CIN, na sigla em espanhol), as remessas às universidades não cobrem sequer 50% das despesas com tarifas de luz, gás, segurança e limpeza, entre outras. Valpa comentou, ainda, que entre dezembro e abril os salários dos professores perderam ser a de 50% de poder aquisitivo.

A marcha universitária desafiou o protocolo antipiquete da ministra da Segurança, Patricia Bullrich, que não conseguiu impedir que as principais avenidas do centro portenho, entre elas a Avenida de Maio, fossem totalmente ocupadas pelos manifestantes. Pela manhã, a ministra admitira que a manifestação seria complicada, e pedira aos argentinos que entendessem que era necessário se adaptar às necessidades de ajuste.

Segundo dados de 2022 (último registro disponível), as mais de 40 universidades públicas argentinas tinham 2.162.947 estudantes, entre eles muitos estrangeiros — cada vez mais brasileiros. Além de pedirem um reajuste de seus orçamentos, as universidades demandam a atualização dos sistemas de bolsas, que mantém, de acordo com o vice-presidente do CIN, os mesmos valores de 2023.

Carlos De Feo, secretário geral da Federação Nacional de Professores Universitários (Conadu, na sigla em espanhol), explicou que “o principal motivo da manifestação é a defesa da universidade pública e gratuita, e o segundo é o orçamento universitário”.

— Se mantivermos o mesmo orçamento de 2023 as universidades não poderão continuar funcionando — concluiu De Feo.

Fonte: O Globo

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