‘Fugindo do front’ e ‘ansiedade por notícias’: a vida de gaúchos que fugiram às pressas da devastação em Porto Alegre

Engarrafamento na única via de entrada e saída de Porto Alegre
Engarrafamento na única via de entrada e saída de Porto Alegre — Foto: Edilson Dantas

As amigas Graziele Valcarenghi e Nariane Cagliari buscam em vão a palavra exata para definir o que sentem. Na pracinha com vista para o Oceano Atlântico localizada na cidade de Capão da Canoa, observam seus filhos, Lívia e Pietro, brincarem animados no balanço, mas o pensamento, contam, está estacionado 150 quilômetros a sudoeste, na Porto Alegre submersa pelas águas do Guaíba, que elas deixaram às pressas na segunda-feira. Como as duas, milhares de moradores da capital buscaram abrigo nos balneários do litoral norte do Rio Grande do Sul.

— Porto Alegre ficou no retrovisor ao som alto de ambulâncias, de comboios de carros do Exército e da Brigada Militar, dos gritos do pessoal da Defesa Civil indicando o único caminho a se seguir. As filas nos postos de gasolina eram assustadoras, assim como a das pessoas em busca de galões de água. A saída da cidade foi como uma cena de guerra, e nós fugindo do front. Isso segue nas nossas cabeças — contam.

Corretora de imóveis, Nariane tem um apartamento a duas quadras da principal praia de Capão da Canoa. Nele também estão, sem prazo para retornar à capital, além de Graziele, consultora de recrutamento para empresas, e das duas crianças, um outro casal de amigos, cuja casa, no Sarandi, na Zona Norte, de Porto Alegre, foi vencida pelas águas do Guaíba.

— Em Porto Alegre, não tínhamos mais água potável e nem para lavar roupa ou jogar na descarga do banheiro. Aqui, a vida parece normal, mas o alívio se confunde com a ansiedade por notícias dos amigos, vizinhos, parentes e colegas de trabalho. E a tristeza das imagens e da dor de quem mais sofre com a tragédia. É como se, sãos e salvos, estivéssemos fora do lugar, do real – diz Graziele.

A ordem de evacuação do prédio de Graziele, que fica na região do Pontal, na Zona Sul da capital, uma das mais afetadas pelas chuvas, chegou no domingo. Na segunda, o prefeito Sebastião Melo (MDB) pediu que “quem pudesse, deixasse Porto Alegre”. As escolas das crianças estão fechadas pelo menos até sexta-feira. Em um cenário de colapso, os amigos decidiram pegar a estrada sem saber quando farão o caminho de volta.

Na quarta-feira de sol e calor acima do esperado para a época em Capão da Canoa, o proprietário dos populares quiosques Vavá, Vavazinho e Vavazão se desdobrava para atender os clientes nas cadeiras à beira-mar. Alex Tomasi conta que o movimento triplicou em relação à semana passada. O dinheiro a mais, claro, é bem-vindo. O motivo, definitivamente não. Ele também não conseguia reduzir em uma palavra a sensação estranha do que via em sua volta enquanto o número de mortos, desabrigados e desaparecidos crescia.

Durante as férias de verão e no Carnaval, o litoral norte gaúcho mais do que dobra de população. É quando condomínios e hotéis operam em máxima capacidade. Jamais em maio. O êxodo fora de época causado por dilúvio bíblico pode ser dimensionado pelos relatos dos que chegaram à vizinha Tramandaí na segunda e na terça-feira: um trajeto de pouco mais de 100km era percorrido em até nove lentas horas, em meio a engarrafamentos e barreiras. A estrutura da região e o fato de as pessoas que rumaram para o litoral terem meios para pagar por hospedagem e alimentação evitou, até o momento, danos sérios na infraestrutura com a chegada dos que já são chamados no comércio (muitos chegaram com a roupa do corpo e foram às compras) local de “refugiados da chuva”.

Mãe e filha, Cristina Vieira e Fernanda Gruendling, as duas professoras de inglês, são vizinhas em Porto Alegre, e resistiram até a manhãzinha de ontem, quando pegaram a estrada para Tramandaí.

— Com a incerteza da água, fomos a última leva a sair de nossa vizinhança. Fernanda queria vir, mas eu achava que iria melhorar. Piorou. Aí refletimos sobre o fato de que temos os meios e deveríamos usá-los agora. Passaremos o Dia das Mães no hotel, onde temos reserva até terça-feira, mas não sabemos de fato quando a água vai baixar, a cidade voltar a respirar, e nós retornarmos nossa vida lá — diz Cristina.

Ontem, a única entrada e saída para Porto Alegre seguia sendo por Viamão, na região metropolitana, pela RS-118, e o cenário não era muito diverso do relatado por Graziele e Nariane. Mas o fluxo de “refugiados da chuva” diminuiu, como pontuaram Cristina e Fernanda, e o percurso já era feito em menos de 4 horas. Bairros inteiros seguem sem luz e há a sensação de que o meio da semana trouxe apenas um respiro que pode terminar amanhã, quando há previsão de chuva pesada na Grande Porto Alegre, que deve seguir pelo menos até segunda. O receio é de o nível do Guaíba voltar a aumentar, de mais inundações, do aumento de refugiados climáticos, de mais dificuldade nos resgates e de o caos na saída da capital ser mais um problema na enorme lista enfrentada pelas autoridades.

Fonte: O Globo

© 2024 Blog do Marcos Dantas. Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo deste site sem prévia autorização.