Financiamento para transição energética é um dos principais desafios do Brasil para o G20

Simon Kofe, ministro das Relações Exteriores, da Justiça e das Comunicações de Tuvalu, faz alerta sobre mudanças climáticas
Simon Kofe, ministro das Relações Exteriores, da Justiça e das Comunicações de Tuvalu, faz alerta sobre mudanças climáticas — Foto: Divulgação/Governo de Tuvalu

Um dos principais nós das negociações de acordos diplomáticos para tentar conter as mudanças climáticas, o financiamento dos investimentos em transição energética e adaptação a um planeta mais quente, com aumento do nível do mar e eventos climáticos extremos como secas e enchentes mais frequentes, também estará no foco das discussões do G20 neste ano sob a liderança do Brasil. Dois temas colocados como prioridade pelo governo brasileiro na presidência rotativa do grupo das maiores economias do planeta, que dura este ano todo, passam por esse obstáculo financeiro: o desenvolvimento econômico sustentável e o combate à fome e à pobreza.

O desafio do financiamento foi um dos destaques do “Kick-off G20 no Brasil”, primeiro encontro com autoridades e especialistas de uma série de debates previstos pelo projeto G20 no Brasil, uma iniciativa dos jornais O GLOBO e Valor e pela rádio CBN. Participantes dos dois painéis do evento, realizado na semana passada, tocaram nesse ponto como um dos principais desafios a serem enfrentados no G20.

O nó vem do fato de as consequências do aquecimento global afetam todos os países, mas os efeitos são desiguais. Países emergentes e pobres — principalmente os localizados nos trópicos, como o Brasil — devem ser os mais afetados. Ao mesmo tempo, têm menos poupança para financiar os investimentos. Por isso, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês), de 1992, elaborada na Rio 92, estabeleceu que os países desenvolvidos deveriam ajudar os pobres e emergentes nesse financiamento. No entanto, esse princípio tem encontrado dificuldades de sair do papel, apesar de acordos e compromissos firmados nas conferências anuais das Nações Unidas sobre o clima (COP).

Na COP-15, de 2009, em Copenhagen, na Dinamarca, foi estabelecida a meta de US$ 100 bilhões anuais transferidos de países industrializados para emergentes a partir de 2020. Mas o patamar ainda não foi atingido. Em 2021, esse valor ficou em US$ 89,6 bilhões, segundo um estudo divulgado no fim do ano passado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, entidade que reúne os países ricos).

— Temos metas cada vez mais ambiciosas (de redução de emissões de poluição), mas não temos meios de implementação para isso — observou Beatriz Mattos, coordenadora de Pesquisa da Plataforma Cipó, entidade liderada por mulheres e dedicada a questões de clima, governança e paz, durante o evento.

O financiamento será um dos temas centrais da COP-29, em novembro, no Azerbaijão. Há expectativa que uma nova meta de financiamento seja estabelecida. No debate, Marcos Caramuru, ex-embaixador do Brasil na China e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), observou que a presidência brasileira do G20 neste ano pode funcionar para o país como uma transição para os seus objetivos diplomáticos para a COP-30, que será realizada em Belém, no Pará, em 2025. A agenda ambiental é uma área em que o Brasil exerce uma liderança geopolítica natural.

Caramuru lembrou que o financiamento a investimentos relacionados às mudanças climáticas enfrenta dificuldades históricas, já vistas no tema da “cooperação para o desenvolvimento”, que, em várias tentativas, acabou resultando “num nível muito elevado de endividamento de uma série de países”:

— A economia de baixo carbono traz uma nova lógica nas relações internacionais, porque estamos diante de um tema em que não dá para deixar alguém para trás. Ou todos os países se engajam com o mesmo grau de compromisso e promovem de fato as mudanças na matriz energética e outras, ou a economia de baixo carbono, tal como planejado, não vai funcionar. E os países menores não têm recursos para isso.

Luciana Costa, diretora de Infraestrutura, Transição Energética e Mudança Climática do BNDES, avaliou que compromissos de financiamento são necessários para que o Brasil possa aproveitar suas “vantagens comparativas combinadas” — como matrizes energética e elétrica com participação elevada de fontes renováveis, recursos minerais abundantes e grande capacidade de produção de alimentos — na transição para uma economia de baixo carbono.

— Qualquer produto produzido no Brasil tende a ter um conteúdo menor de carbono, mas essas são vantagens comparativas que ainda não viraram vantagens competitivas. O Brasil ainda não se beneficia disso. Os nossos grandes desafios são financiamento e precificação de externalidade negativa, precificação de carbono — afirmou Luciana, para quem a posição brasileira na geração de energia limpa credencia o país para liderar essa discussão.

Segundo a diretora do BNDES, o financiamento dos investimentos para a transição energética é ainda mais importante para os países mais pobres porque, na economia globalizada, mercados emergentes são vistos como mais arriscados e, por isso, costumam ter juros e custo de capital em geral mais elevados que nos países desenvolvidos.

Apesar do desafio, Luciana acha que avanços no tema do financiamento poderão ser um dos resultados das discussões do G20 neste ano, gerando um impulso para a COP-29 “conseguir alguma coisa concreta”, em termos de mobilização de recursos não reembolsáveis ou de redução de juros para países emergentes. Entre possíveis decisões, a diretora do BNDES cita a obrigatoriedade de aportes em fundos de REED+ (redução das emissões por desmatamento e degradação florestal, mecanismo criado em 2005, na convenção anual daquele ano), como o Fundo Amazônia, ou a criação de fundos garantidores, que podem ampliar o crédito nessa área.

— Garantia é uma parte importante de project finance (modelo de financiamento comumente usado em projetos de infraestrutura). Pode-se criar um grande fundo que consiga garantir empréstimos para países mais arriscados, por exemplo — aventou Luciana.

Para Beatriz, da Plataforma Cipó, é importante levar esse debate para o G20 porque as mudanças climáticas não são um problema apenas ambiental. Seus impactos sobre as populações são marcados pelas questões sociais. Mazelas como a fome e a pobreza também necessitam de financiamento para serem enfrentadas. Mauricio Lyrio, secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Itamaraty e coordenador da trilha de sherpas (negociadores) do G20, reconheceu as dificuldades:

— O debate sobre os fundos de financiamento para o combate às mudanças do clima e o combate à fome também é contaminado pelas divergências geopolíticas.

Por outro lado, o diplomata ressalta que o Brasil insiste no tema porque, a exemplo do destaque na energia de fontes renováveis, tem políticas sociais de sucesso no enfrentamento da fome e da pobreza, com “décadas” de conhecimento sobre o que “é efetivo”. É o caso dos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, do Cadastro Único, base de dados que reúne informações sobre as famílias mais vulneráveis, do fornecimento de merenda escolar e do apoio à agricultura familiar.

— Certamente, a questão de fundos financeiros e de oferta de alimentos é crucial, mas ainda mais importante é o acerto nas políticas públicas que permitam às pessoas pobres terem acesso a recursos para a compra de alimentos. Isso está provado — afirmou Lyrio, que participou do evento por videoconferência.

Henrique Frota, presidente do C20, grupo de engajamento do G20 que reúne as entidades sem fins lucrativos de todo o mundo, concordou que a aposta do Brasil no tema do combate à fome é acertada. Com base na experiência das negociações globais para coordenar respostas à Covid-19, Frota vê espaço para avanços sobre o financiamento para combater também mazelas da saúde, que estão relacionadas aos desequilíbrios socioeconômicos.

— Fala-se, por exemplo, na medida de dívida por saúde, ou seja, uma amortização da dívida externa de países superendividados em troca de investimentos domésticos em saúde. Ou uma medida semelhante para o clima, para investimentos domésticos em políticas climáticas. Inclusive os EUA começam a embarcar nessas proposições. O problema não são os credores públicos, o problema são os credores privados — apontou Frota, que também é diretor-executivo do Instituto Pólis e da Abong, associação que reúne as organizações não governamentais do país.

Constanza Negri, principal negociadora do Brasil no B20, o grupo de engajamento do setor privado, afirmou que a contribuição das empresas, em paralelo às discussões do G20, intensificou-se nos últimos anos, sempre com o intuito de oferecer aos governos recomendações de políticas públicas.

— A agenda de clima e de finanças é uma na qual nós, como B20, vamos colocar muito esforço, para que o grupo de finanças e infraestrutura, que já está tratando a questão de como alavancar financiamento privado, seja uma das áreas em que vamos trabalhar para ter uma recomendação com olhar integrado — diz Constanza, que é gerente de Política Comercial da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Para Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), as dificuldades crescentes de diálogo entre potências, com o aumento das tensões geopolíticas em um mundo multipolar, poderão tornar o nó do financiamento ainda mais difícil de desatar. Mais tensões tendem a levar a mais conflitos armados localizados, provocando um aumento dos gastos dos países com defesa que já é visível. É mais um fator que prejudica o financiamento das ações de transformação nos eixos ambiental e socioeconômico.

Em sua participação no evento, Stuenkel contou os sinais disso que percebeu ao assistir uma palestra do ministro da Defesa da Alemanha, Boris Pistorius, numa conferência do setor em Munique, recentemente:

— O ministro da Defesa anunciou lá que prevê que a Alemanha terá de gastar 3,5% do PIB na área de defesa, sendo que hoje gasta, talvez, 1%. Isso é uma transformação da economia alemã muito profunda. Quer dizer muito menos dinheiro para pesquisa, educação, saúde, infraestrutura e, provavelmente, para a transição energética.

Até mesmo a contribuição da ciência para enfrentar os problemas globais é marcada por desigualdades em termos de capacidade de financiamento, pontuou Helena Nader, principal negociadora brasileira do S20, o grupo de engajamento da comunidade científica no G20. Presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), ela explicou que o grupo discute “compartilhamento da informação”, ao mesmo tempo em que, por exemplo, as grandes farmacêuticas resistem a investir em pesquisa e desenvolvimento (P&D) nos países emergentes, com poucas exceções.

— No S20, quando olhamos o Norte Global (países ricos), eles não conseguem entender, porque não têm ideia do que é o financiamento de ciência no Sul Global (países em desenvolvimento), tirando a China. Não conseguem entender que um financiamento seja de R$ 50 mil no Brasil, para três anos. E, só para publicar um artigo na Science ou na Nature (as duas principais revistas científicas do mundo, que, assim como as maiores publicações acadêmicas, costumam cobrar pela submissão de artigos), é R$ 50 mil. As diferenças de ciência são muito fortes.

Fonte: O Globo

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