Família doa corpos de pai, mãe, tia e irmão para laboratórios do Estado

“Aqui é o lugar onde a morte se alegra em socorrer a vida”. A frase, escrita em latim, está exposta em um dos laboratórios de anatomia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ela ajuda a dar sentido ao processo natural da vida humana, muitas vezes incompreendido. A morte pode não ser o fim. Pelo contrário, pode contribuir com a compreensão do ser. Por isso, a doação de cadáveres é um passo importante para garantir a continuidade da ciência. A família Martins entendeu esse propósito, e abraçou, para além da vida, a educação.

A família, que é do Rio Grande do Sul, doou, ao  todo, quatro corpos para laboratórios de anatomia do Estado. O primeiro foi  Sidney Antônio Martins, que faleceu aos 72 anos de infarto fulminante em 2000. Elodea Martins, sua filha, o descreve como uma pessoa independente, daquelas que dizia e fazia. “Para morrer basta estar vivo” era o que falava. Para ele, a morte fazia parte do processo natural da própria vida. O encerramento de um ciclo, não necessariamente o fim. Não pode ser o fim quando sua matéria tem continuidade nesse plano. Papel fundamental para algo oposto à própria o morte, o avanço.

A ideia de doar seu corpo foi de um dos seus filhos, Rodnei Martins. Ele entrou em contato com uma a técnica em anatomia e necrópsia, Josefa Bento, com quem tinha amizade, para saber mais sobre o processo de doação. Depois disso, assinou os papéis e doou. Na época, Elodea morava com os dois filhos e seu irmão vivia com os pais, pois era solteiro. Ela não se opôs à iniciativa, concordou de pronto. Além disso, o falecimento foi repentino, não houve tempo para planejar.

Quando Sidney Martins faleceu, algumas pessoas estranharam a decisão de doar o corpo. Houve questionamentos, críticas de amigos, conhecidos e familiares. A principal queixa era a falta de um funeral. A necessidade de ver o ente querido pela última vez e ter a certeza que seu papel foi cumprido era uma das reivindicações. Mesmo assim, a família continuou com o processo e o cadáver foi cedido para a Universidade Federal do RN.

“Uns aceitam, outros não, uns ficam pensando. Então, é assim. Cada um tem um jeito de ser, uma forma de pensar”, diz a filha. Ela lembra de dizer aos críticos que gostaria que todos também procurassem saber mais para serem doadores. “Foi feita a doação do corpo e eu gostaria que todos fizessem isso para a ajudar”, completa Elodea Martins.

Após a doação do cadáver do pai, foi a vez da mãe, Liane Ruth Martins, que faleceu aos 81, em 2012. Ela tinha doença de Parkinson e transtorno bipolar. Segundo Elodea, sua mãe era uma pessoa carinhosa, dona de casa. Viveu em uma época em que a mulher devia se dedicar única e exclusivamente a família, aos deveres do lar. O processo de doação do seu corpo foi mais tranquilo, as pessoas já tinham se acostumado com a ideia.

Além disso, a família inteira já tinha assinado o termo para doar os corpos após o falecimento de Sidney. Mãe e filhos assinaram e autenticaram em cartório a declaração para serem doadores. Algo como um último desejo. O destino final da matéria que antes iria se decompor na terra, mas que ganhara um outro propósito desde então.

Elodea, que é artesã, conta que, pouco depois da morte do seu pai, a mãe comentou que tinha gostado do processo de doação. “É melhor estudar em um corpo humano do que em bonecos”, disse Liane, na época. Desde então, já expressava a importância de doar o corpo, mesmo que poucas pessoas doassem ou falassem sobre isso há alguns anos. “Um boneco não é a mesma coisa do que foi um corpo”, completa a filha, repetindo as palavras de sua mãe.

Uma das pessoas que criticaram a primeira doação feita foi Odete de Deus Martins, irmã de Sidney.  Ela faleceu já em 2015, aos 83 anos. Tinha Alzheimer e sua sobrinha foi sua guardiã nos últimos dias de vida. Ao longo dos anos, Elodea explicou o processo de doação de corpos e ela já aceitava a ideia. Embora não tivesse assinado o termo em vida, seu corpo também foi doado para a Universidade Federal e continua lá até hoje.

A ultima doação aconteceu em 2017, há apenas  cinco anos. O corpo de Rodnei, que faleceu aos 57 anos, foi doado para a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), no campus de Mossoró. Na época, a UFRN não aceitou o cadáver, que tinha passado por uma autópsia. Então ele foi cedido para a universidade estadual. Sua irmã não sabe dizer se corpo também continua lá até hoje.

Elodea Martins fala que é importante atribuir um outro propósito à matéria, que não tem serventia depois da morte, segundo suas palavras. “Depois que morre, a matéria, como dizem, vai para a terra comer”, afirma. Para ela, essa é uma maneira de ajudar os estudantes que precisam desenvolver pesquisas e técnicas na Universidade e instituições de pesquisa.

Ela conta, também, que algumas pessoas até mudam de ideia com relação a doação de corpos, outros acham curioso. ”Até já me pediram a xerox do documento para doação do corpo”, comenta. Depende do ponto de vista, cada um tem uma ideia diferente, que pode ou não aproximar a pessoa do assunto, sem tabu ou medo.

“O corpo é só matéria”, diz Elodea

Elodea Martins tem 67 anos e já tem o termo assinado para ser doadora. Ela é graduada em letras português e inglês pela UFRN e conta que sua crença é uma das principais motivadoras. Para ela, que hoje é artesã, o que importa é o espírito. Após a morte, o corpo não tem serventia, portanto, pode ser usado para auxiliar o ensino. “O corpo é simplesmente uma matéria, que vem, que evolui, e assim sucessivamente. Encarna e desencarna”, declara.

Em geral, seu núcleo familiar mais próximo já era orientado nessa doutrina sob influencia do avô paterno. Seu pai, que falava com certo desapego, também levava em vida certos ensinamentos do espiritismo. “O corpo vai se decompor  e o espírito continua. A gente tem essa crença de que o espírito continua, é imortal”, completa.

A artesã expressa seu desejo espontaneamente. “Eu já falei que, no dia que eu me for, que eu desencarnar, o meu corpo vai para a Universidade”, declara. Ela conta que encara a morte de maneira natural. Cresceu ouvindo o pai dizer, entre outras coisas: “Morreu porque estava vivo” e é assim que leva mesmo, uma parte necessária do processo. Imprescindível para evoluir, segundo sua crença. É desencarnar e só.

Embora haja desapego, ela não deixa de sentir falta de seus familiares. “Claro que a gente sente, que a gente fica triste”, comenta. “Até hoje sinto muita falta dele, da minha mãe, da minha tia, do meu irmão”, completa. Mesmo assim, se apega aos momentos que foram vividos, as experiências que tiveram juntos. Isso que importa. “De uma certa forma, há até um conforto. A gente guarda o que foi, o que viveu, as coisas boas”, finaliza.

Elodea perdeu seu avô paterno quando tinha quatro anos e conta que também sente sua falta, apesar do tempo. Aos 14, perdeu seu avô materno e, em seguida, uma das avós. De acordo com ela, a morte deles ajudou a enxergar todas as etapas da vida de maneira simples e natural, incluindo a mais difícil delas. “Sempre a morte esteve muito perto de mim, então eu consigo enxergar de forma natural. É a coisa mais certa da vida”, afirma.

O professor e vice-diretor do Centro de Biociências da UFRN, Expedito Silva, conta que esse é um caso curioso. Contudo, o que afasta as pessoas dessa realidade é a falta de informações. “Tudo é uma questão de informação. Na hora que a gente se informa, a gente começa a quebrar certas barreiras”, afirma. “Quando a família entender o programa e sentir que o que a gente faz é uma coisa séria, como a gente trata nossos doadores aqui, a gente vai quebrando esse gelo devagarinho”, completa.

Ao falar sobre a Família Martins, a técnica Josefa até brinca, diz que Elodea sempre vai para as cerimônias. Numa das vezes até chegou a falar com os estudantes. Incentivou a doação e endossou a importância de ceder o corpo para essa finalidade. “Acho que isso também colaborou para eles abrirem mais a mente, de repente. Foi muito boa a cerimônia e eu ter falado com os próprios alunos”, conta.

Hoje mora em Rio das Ostras, no estado do Rio de Janeiro. Ela tem outro filho, que reside em Natal. Não encara a vida de forma pesada, apesar de já ter vivido muito. Pelo contrário, firmada na sua crença, ela sabe que a morte não é o fim. Nesse caso, nem para o corpo. A história da sua família pode até ser curiosa, um tanto incomum, mas é única. A forma de encontrar sentidos até no que muitos chamam “o fim da linha”.

Do Tribuna do Norte