Falta crônica de energia leva tema ao centro das eleições sul-africanas e expõe uso do carvão

Grupo de ativistas ambientais protesta contra empresa estatal de energia em Soweto, na África do Sul
Grupo de ativistas ambientais protesta contra empresa estatal de energia em Soweto, na África do Sul — Foto: IHSAAN HAFFEJEE / ANADOLU

Em 83 dos 118 dias deste ano, moradores da África do Sul passaram parte do tempo às escuras, segundo dados da plataforma The Outlier. A crise começou há cerca de 17 anos no país, que completou no sábado três décadas sob o controle do Congresso Nacional Africano (CNA), partido de Nelson Mandela, eleito em 1994. E mais do que nunca, o risco de um apagão total no país preocupa os sul-africanos, que irão às urnas no mês que vem. Em uma pesquisa recém-divulgada pela organização Nguvu Collective, 85,5% dos entrevistados disseram que a crise energética nacional é o principal problema que precisa de uma solução imediata.

— Nas últimas eleições gerais, em 2019, os três partidos que receberam o maior número de votos dedicaram uma média de apenas 2% dos seus programas de governo à eletricidade. Na atual campanha eleitoral, as principais legendas dedicaram até 10% ao tema — afirma Hartmut Winkler, professor da Universidade de Johannesburgo, que se dedica ao assunto.

Na raiz do problema está uma fonte de energia ultrapassada no mundo, o carvão. Apesar de ter diminuído nos últimos anos, números oficiais da Agência Internacional de Energia indicam que hoje cerca de 80% da energia da África do Sul ainda vêm do combustível fóssil — em 2021, esse total chegava a 86%.

Na última década, a produção nas principais centrais elétricas a carvão do país caiu de quase 80% para cerca de 55% de sua capacidade máxima, em grande parte por causa do envelhecimento dos equipamentos, da utilização excessiva e manutenção inadequada.

— Muitas centrais estão perto do fim da vida útil planejada inicialmente. A nova capacidade de produção deveria ter sido desenvolvida há muito tempo, mas os projetos iniciados estavam muito atrasados em suas épocas de construção, ou acabaram bloqueados por interferência política — explica Winkler.

Em 2015, o então presidente Jacob Zuma tentou implantar um novo programa de construção nuclear liderado pela Rússia, mas falhou por questões legais e críticas da oposição. À época, o programa eólico e solar se mostrava uma alternativa de sucesso. Mas, mesmo com algumas das melhores condições para a produção de energia solar e eólica no mundo, hoje apenas cerca de 10% da eletricidade do país vêm de fontes renováveis.

O professor considera “bizarro” o fato de que um programa de construção de parques solares e eólicos não esteja sendo levado a sério no país, membro do Brics+ (bloco que inclui também Brasil, Rússia, China, Índia, Egito, Irã, Arábia Saudita, Etiópia e Emirados Árabes Unidos), que tem a transição energética como tema crucial.

— A razão para esta situação se deve, na minha opinião, principalmente ao interesse do grande setor do carvão e a um influente lobby nuclear e do gás. Nesse sentido, sinto também um forte impulso de países terceiros, especialmente da Rússia — diz.

Hoje em dia, a expressão load shedding (redução de carga) faz parte do vocabulário de quem vive no país, considerado o mais industrializado do continente africano. De acordo com o programa de revezamento de corte de energia, um aplicativo de celular envia um alerta informando quando não haverá eletricidade em determinado bairro. Os cortes podem ser diários e se repetir em diferentes turnos E, para piorar a situação da já inadequada infraestrutura, roubos de fios de cobre e problemas de manutenção também costumam deixar a população sem eletricidade — o que o aplicativo não prevê.

A chef de cozinha brasileira Conceição Silva conta que já chegou a ficar três dias sem energia em casa.

— Já joguei fora fornadas de pães porque a luz faltou e diziam que chegaria em tal horário, o que não aconteceu. Tive que jogar fora toda a produção para um evento porque a massa fermentou demais e estragou. Já descartei também carne e frango devido ao mesmo problema — conta.

Assim como ela, a escritora Kinha Costa também já teve prejuízos causados pelos constantes cortes de energia.

— O portão elétrico da minha casa e modems de internet já precisaram ser trocados porque queimaram.

Kinha e o marido decidiram gastar cerca de R$ 30 mil instalando um sistema alternativo, que inclui oito painéis solares e baterias. Quando a energia acaba, automaticamente ele começa a operar. Mas é um investimento que nem todos conseguem fazer. Quem depende da internet para trabalhar tem instalado em casa alguns equipamentos mais baratos que mantêm, pelo menos, o serviço funcionando.

O tempo que a população fica sem eletricidade depende do estágio do load shedding anunciado pela Eskom, distribuidora pública de energia — recentemente a empresa comemorou um mês sem suspender o fornecimento de energia. O Regulador Nacional de Energia da África do Sul (Nersa, na sigla em inglês) acaba de aprovar a implementação do estágio 16 como o máximo.

— A fase 16 implica ausência de energia durante quase 24 horas por dia. Seria uma situação de crise extrema, só imaginável em caso de guerra ou de grande desastre natural — explica Winkler, destacando que o programa é uma ferramenta para evitar o colapso da rede. — Um colapso ocorre quando o uso de energia excede o fornecimento. O load shedding força a redução do uso.

A questão entrou de vez nas eleições. O partido opositor Aliança Democrática, assim como outras legendas, acredita que a privatização em grande escala da eletricidade pode acabar com os cortes de energia. Já o Combatentes pela Liberdade Econômica, de extrema esquerda, defende a nacionalização e quer rescindir os contratos existentes com produtores privados. Propõe reparar centrais elétricas alimentadas a carvão e mantê-las em funcionamento por mais tempo.

— Mas consertar algumas usinas pode ser proibitivamente caro — alerta o pesquisador.

O CNA, que corre o risco de perder pela primeira vez a maioria no Parlamento, segundo as pesquisas mais recentes, cita o crescimento industrial e as oportunidades de emprego associadas às energias renováveis, como o desenvolvimento de um setor de hidrogênio verde. O partido diz, ainda, que pretende “desenvolver projetos de gás, energia nuclear e hidroelétrica”.

Seja quem for, o próximo presidente sul-africano terá que conduzir um programa técnica e financeiramente sensato para aumentar a produção de eletricidade, avalia Winkler.

— Basicamente, isso significa construir novas centrais elétricas para substituir as antigas centrais a carvão. Isso terá de ser principalmente na forma de novos parques solares e eólicos, e penso que o presidente mais provável, Cyril Ramaphosa [que busca a reeleição], vê as coisas dessa forma. No entanto, enfrentará muita oposição dentro do partido e de potenciais parceiros de coligação que são, na minha opinião, fãs equivocados dos combustíveis fósseis e da energia nuclear.

Fonte: O Globo

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