Experimento de cientista brasileira simula com sucesso agricultura em Marte

A lavoura experimental com terra simulando solo marciano criada por Rebeca Gonçalves na Universidade de Wageningen (Holanda)
A lavoura experimental com terra simulando solo marciano criada por Rebeca Gonçalves na Universidade de Wageningen (Holanda) — Foto: Rebeca Gonçalves/divulgação

Uma técnica ancestral de produção agrícola que mescla na mesma lavoura plantas que beneficiam umas às outras pode ajudar humanos a produzirem comida em um ambiente inóspito pouco explorado: o solo de Marte. Liderado por uma cientista brasileira, um experimento mostrou como essa prática, chamada consorciamento, pode melhorar a produção de alimentos por futuros astronautas no planeta vermelho.

Nenhuma agência espacial fixou data ainda para tentar mandar pessoas a Marte, mas pelas limitações que uma eventual viagem trará, é provável que ela não será possível sem as pessoas produzirem ali sua própria comida.

O que a astrobióloga Rebeca Gonçalves mostrou em num estudo com colegas da Universidade de Wageningen, na Holanda, é que será complexa a tarefa de fazer cultivares terrestres fincarem raiz no “regolito” marciano, o solo puramente mineral do planeta, sem nutrientes orgânicos. Mas, com o jeito certo, é possível fazer isso acontecer.

No experimento que a cientista descreve hoje em artigo na revista PLoS One, realizado para sua tese de mestrado, ela mostra como o plantio em consorciamento usando tomate, ervilha e cenoura se dá em três tipo de solo: a terra “terrestre” comum, areia comum e uma simulação de regolito marciano. A areia foi incluida porque um dos objetivos do experimento era testar a eficiência da consorciação em terrenos degradados aqui na Terra também.

Nunca uma sonda espacial conseguiu trazer de volta uma amostra de solo de Marte, mas como a composição geoquímica do material já foi extensamente analisada, cientistas já conseguem hoje produzir artificialmente o regolito. Coletando do deserto de Mojave, no oeste dos EUA, um grupo do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa consegue manipular o material para que ele fique com o mesmo teor dos minerais encontrados em Marte, e possa ser usado aqui para experimentos.

A demanda por esse insumo de pesquisa é tão grande que os cientistas criaram até uma empresa, chamada The Martian Garden, que vende regolito marciano a quem quiser comprar.

Foi esse solo que Rebeca e seus colegas em Wageningen, um dos melhores polos de pesquisa em agricultura do mundo, usaram para fazer uma pequena lavoura e tentar entender melhor os desafios de produzir comida no planeta vermelho.

Quem olha o aparato montado para realizar esse experimento dificilmente não se lembra do filme “Perdido em Marte”, no qual um astronauta interpretado pelo ator Matt Damon planta batatas para sobreviver em solo marciano após uma tempestade destruir um assentamento humano no local.

Assim como na obra de ficção, os cientistas cultivaram seus vegetais em uma atmosfera como a terrestre, e proporcionaram às plantas o mesmo ar que os astronautas vão respirar. O solo usado, porém, foi o regolito, porque dificilmente uma expedição a Marte terá recursos para levar sacas de “terra terrestre” até lá.

— As primeiras colônias marcianas vão ter recursos muito limitados tanto de água quanto de outras coisas que a gente pode levar para lá — explica a cientista. — Cada quilo que gente leva para lá sai por US$ 2 milhões, então tipo quanto mais a gente puder utilizar recursos locais de Marte mais viável se torna um projeto de missão, não só em termos práticos mas também financeiros.

A ideia de usar o consorciamento com diferentes espécies de planta em uma lavoura marciana surgiu porque isso pode compensar a falta de nutrientes que o solo regolito oferece. A inclusão de uma leguminosa na plantação (no caso, a ervilha) se deu porque esse tipo de vegetal age em sintonia com bactérias que captura nitrogênio do ar e permitem que a planta o absorva pela raiz.

A ideia é que a ervilha ajude, por tabela, as cenouras e tomateiros que estão a seu lado.

Uma vez plantadas em vasinhos numa estufa em Wageningen, o experimento deu certo para os tomateiros, que cresceram muito mais e deram muito mais frutos. As plantas dispostas em consorciamento cresceram melhor do que aquelas em forma de “monocultura marciana”. Para a ervilha em si e para a cenoura, porém, a técnica não foi benéfica, e Rebeca explica por quê.

— O que a gente viu no experimento é que as bactérias não gostaram muito do regolito Marciano — diz a cientista. — O regolito que existe lá é muito fininho, muito poeirento, e quando a gente aguava os vasos ele ganhava uma consistência de argila muito compacta. Isso é ruim, porque atrapalha a difusão de oxigênio, de CO2 e de outros gases necessários para as bactérias.

O grupo de Wageningen já está pensando, porém, e formas práticas de tentar deixar o solo marciano um pouco mais aerado, o que deve ajudar futuramente no cultivo de vegetais marcianos.

Apesar de o resultado do plantio em regolito ter apresentado dificuldades, o braço do experimento que usou areia relativamente estéril foi de grande sucesso, e todos os vegetais cresceram melhor em forma de consorciamento do que de monocultura.

O resultado ajuda a validar essa técnica de plantio antiga, empregada pelo antigo povo maia, para uso onde o chão foi castigado pela ação humana ou pela mudança climática. A ideia é que a pesquisa inspire o teste dessa técnica em escala maior em lugares onde ela possa ser empregada na prática.

Rebeca já trabalhou como trainee na Agência Espacial Europeia (ESA) no setor que seleciona experimentos comerciais para serem realizados na Estação Espacial Internacional (ISS) e diz que seu convívio com astronautas a inspirou a assegurar que a astrobiologia tenha relevância também para compreender a Terra.

— Todos nós, cientistas espaciais, somos um pouco imbuídos desse sentimento de superproteção da Terra e de cuidar para que nossa pesquisa traga algum benefício aqui — diz a cientista — Muitos astronautas contam que quando eles veem do espaço a Terra com aquela camadinha fina de atmosfera em volta, eles percebem como ela é frágil e como a gente precisa, acima de tudo, cuidar dela e protegê-la.

Fonte: O Globo

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