Escola indígena recupera língua materna com livros didáticos próprios

Elisangela, professora, exibe livros didáticos Ofaié em sala de aula no meio da natureza -  (crédito: Mayara Souto/C.B/Diários Associados)
Elisangela, professora, exibe livros didáticos Ofaié em sala de aula no meio da natureza - (crédito: Mayara Souto/C.B/Diários Associados)

Uma roda de bancos feitos com tronco de árvore, em meio à floresta, é a “sala de aula” das crianças Ofaié. A professora Elisangela Eliandes, também indígena, conta que esse formato deixa os alunos mais “confortáveis”. Ao todo, são seis estudantes do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental, que estudam na escola dentro da aldeia.

“Eles aprendem a ler assim, sentados na natureza. Tem muita coisa aqui, é uma riqueza. A gente fala sobre matemática, geografia, ciências da natureza, tudo aqui. Toda vez que eles vêm aqui, eles já sabem o por quê desse [galho] aqui, o porquê está enroscado no outro, o por quê que a árvore é alta”, conta a Ofaié, que cresceu na comunidade, fez uma formação de ensino normal-médio (similar ao magistério) em Povos do Pantanal e, atualmente, estuda Licenciatura Intercultural Indígena na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Aquidauana.

De acordo com o Censo Indígena, divulgado pelo Inep em 2023, das 178,3 mil escolas de ensino básico, 3.541 (1,9%) estão localizadas em terra indígena — ministram conteúdos específicos e diferenciados, de acordo com aspectos etnoculturais — e 3.597 (2%) oferecem educação indígena, por meio das redes de ensino. Assim, atualmente, são 3.583 escolas indígenas, sendo que dessas 3.366 ofertam Ensino Fundamental e 539 ofertam Ensino Médio. O Censo apontou 292.497 matrículas de estudantes indígenas na educação básica.

“É uma grande curricular comum para ser incluída dentro do sistema, e é diferenciada pela localidade e a forma de ensino”, explica o também professor, Silvano de Souza. De acordo com ele, a forma didática indígena é diferente da tradicional. “Nós temos essa preocupação histórica, tradicional, e também de ter essa revitalização do pertencimento indígena que a gente perdeu por um tempo”, acrescenta.

Metodologia diferenciada

Em resposta ao Correio, o Ministério da Educação explicou em nota o funcionamento das escolas indígenas. “Em todos os níveis e modalidades da Educação Escolar Indígena, devem ser garantidos os princípios da igualdade social, da diferença, da especificidade, do bilinguismo e da interculturalidade, contando preferencialmente com professores e gestores das escolas indígenas, membros da respectiva comunidade indígena”, diz o texto. Eles ainda afirmam que as escolas indígenas “seguem formatos distintos de acordo com as questões culturais e contextos territoriais de cada povo indígena”. 

Na prática, uma das diferenças de uma escola tradicional, por exemplo, é a forma de avaliação dos alunos, que não se dá através de provas, mas sim da observação do desenvolvimento de cada um. “A prova escrita faz ser competitivo. Você foi criado para ser competitivo, durante a vida inteira, não será dentro de uma aldeia indígena que você vai ser competitivo com seu próprio parente”, avalia Silvano.

Durante a aula, que também ocorre dentro da escola, um fato chamava a atenção: o silêncio. Ao contrário das salas de aula tradicionais, as crianças de até 11 anos, estavam pacientemente escutando o professor. De acordo com Silvano, isso faz parte da cultura Ofaié que também é ensinada, a de respeitar autoridades e saber o momento certo de falar.

Outro traço cultural bastante utilizado é a mitologia. Na escola, o material didático utilizado pelos estudantes foi desenvolvido pelo próprio corpo docente indígena – são cerca de 4 livros que ensinam a língua materna Ofaié e a história do povo.

Criação didática

Com desenhos das crianças e textos em português e em Ofaié, um dos livros conta alguns mitos. “Isso é muito importante para as crianças, para elas saberem que pertencem a uma história. Eles podem ganhar o mundo, chegar lá no outro país, mas eles têm que saber quem eles são, de onde eles vieram e para onde eles vão”, comenta a professora.

Silvano explica que a escola tem “papel principal de reconstruir a identidade” do povo Ofaié, que ficou longe das suas terras por uma década durante a ditadura militar. Para a construção do material escolar foi feito um intenso movimento de revitalização cultural, pois, atualmente apenas seis pessoas em toda a comunidade falam a língua materna.

“A gente foi começar a trabalhar com a língua materna aqui faz 8 anos. O professor José veio e nos deu esse apoio, buscamos muito trazer os falantes na nossa sala de aula para contarem a história e as crianças saberem mais, né? Eles viveram, nós só ouvimos”, ressalta Elisangela, que conta que fez toda sua formação no mesmo local, mas tinha professores não-indígenas, então, não aprendeu a língua Ofaié. Ela se considera “ouvinte passiva”, pois compreende algumas palavras, já que ouvia sua mãe conversar na língua materna.

O ancião José aceitou o desafio de introduzir o idioma na escola e teve uma importante missão: registrar a escrita Ofaié. “O método de ensinar do passado, da comunidade, era na oralidade, numa roda de conversa. E aí não ficava registrado na escrita. Morreu, acabou. Então, a minha preocupação é deixar tudo isso registrado”, conta. Assim, nos anos 2000, ele foi em busca de parceria com o projeto “Saberes Indígenas” da UFMS, que foi uma iniciativa do governo federal, em meados de 2015.

Com a orientação do único falante disposto a auxiliar, linguistas da universidade orientaram no trabalho de registrar as palavras, os fonemas e as formas de escrita Ofaié. Com isso, foi configurado o dicionário de português para Ofaié, que é considerada uma língua única no mundo.

“Hoje nós não lutamos mais com ataque, muito menos com arco e flecha, hoje nós lutamos com o que você tem na mão (uma caneta) para poder reconstruir a nossa história, que foi dizimada. E onde a gente tem esse espaço é dentro da escola”, declara Silvano. Atualmente, as crianças que passam por ali saem aprendendo os cumprimentos em Ofaié, nomes de animais, alimentos, entre outros.

A intenção dos três professores é que, com a retomada da cultura e da língua, a etnia continue existindo e passe longe da condenação dada pelo historiador. “É preciso que a escola tenha um senso de pertencimento para eles continuarem na comunidade, se não, vou perder todo mundo. A intenção é que eles vão (estudar), voltem, fiquem, construam tudo dentro da reserva. Perdemos bastante já”, afirma Silvano.

*A jornalista viajou a convite do Sebrae.

Fonte: Correio Braziliense

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