Entrevista: prefeitos trazem duas visões de uma mesma tragédia

Prefeito de São Leopoldo (RS), Ary Vanazzi e o prefeito da Capão da Canoa, Amauri Germano -  (crédito: Lisandro Lorenzoni/Prefeitura de São Leopoldo; Mayara Souto/CB/D.A Press)
Prefeito de São Leopoldo (RS), Ary Vanazzi e o prefeito da Capão da Canoa, Amauri Germano - (crédito: Lisandro Lorenzoni/Prefeitura de São Leopoldo; Mayara Souto/CB/D.A Press)

A reportagem do Correio foi conhecer de perto duas realidades distintas, envolvidas no mesmo contexto deste que já é considerado o pior acidente climático já ocorrido no Brasil. Em São Leopoldo (RS), uma das cidades mais atingidas pelas chuvas que castigam o Rio Grande do Sul, nem mesmo o prefeito Ary Vanazzi escapou de ter a sua casa inundada.

Ele conta sobre a dificuldade de ter de sair do lugar onde vivia com a família nos últimos 18 anos. Historiador, o prefeito diz sentir o tamanho da dor dos seus 100 mil conterrâneos que também precisaram abandonar casas e vidas depois do alagamento recorde que deixou quase metade da cidade, de cerca de 240 mil habitantes, embaixo d’água. “É muito difícil a vida assim, eu estou falando de mim, mas fico imaginando a vida dos meus vizinhos também. Você volta para casa e não tem mais nada, é uma dor no peito, é um desespero total”, desabafou o prefeito. Apesar da destruição, Vanazzi mostra confiança na reconstrução do município, que é um importante polo universitário e industrial da região metropolitana de Porto Alegre.

A 150 quilômetros de São Leopoldo está Capão da Canoa, no Litoral Norte gaúcho, principal destino turístico para o verão dentro do estado. Anualmente, os 23 municípios sentem o aumento populacional durante a alta temporada com os turistas que passam alguns dias e também aqueles que possuem casas de veraneio. Nos últimos dias, no entanto, mesmo com dias nublados e frios, a movimentação nas cidades é alta, devido ao êxodo da capital gaúcha, por conta das enchentes.

A prefeitura estima que o número de habitantes saltou dos 63 mil habituais para cerca de 200 mil. Amauri Germano, prefeito da cidade e também presidente da Associação de Municípios do Litoral Norte, comentou os desafios enfrentados no acolhimento dos desabrigados e se há infraestrutura no local caso parte da população decida ficar fixa na região litorânea. “O nosso orçamento não estava previsto para receber todas essas pessoas que vieram. Essas pessoas que estão no nosso município vão acabar utilizando da assistência e inclusão social, e aí vai dobrar o investimento”, observou.

A seguir, trechos das entrevistas:

Prefeito de São Leopoldo (RS), Ary Vanazzi

  •  Prefeito Ary Vanazzi faz live extraordinária para orientação da população em meio à maior enchente da história de São Leopoldo

    Prefeito Ary Vanazzi faz live extraordinária para orientação da população em meio à maior enchente da história de São Leopoldo
    Lisandro Lorenzoni/Prefeitura de São Leopoldo

Qual a situação de São Leopoldo hoje?

Estamos com 180 mil pessoas atingidas, com 100 mil pessoas que saíram de casa, e 34 mil residências embaixo da água. Somos o terceiro município do estado em número de pessoas atingidas pelas cheias. Estamos com 13 mil pessoas acolhidas em 102 albergues que são os acompanhados pela prefeitura, além de 22 feitos pela iniciativa privada, em igrejas. Nesses também estamos abastecendo com alimentação para quem solicita.

Qual a expectativa das águas baixarem?

Estamos colocando seis bombas para drenar as águas, se conseguirmos colocar até a próxima sexta-feira, se tudo isso funcionar, a gente vai estar com menos água nos bairros. Mas a defesa civil do estado está alertando que na quarta, quinta e sexta, podemos ter um grande volume de chuvas no estado.

O senhor perdeu a casa na cheia?

Minha casa continua embaixo da água, eu não parei para pensar nisso ainda. Efetivamente, eu não consegui fazer nada, estou esperando quando baixar a água para tentar organizar. Mas eu sei que perdi tudo: móveis, as roupas das crianças, a minha história, fotografias, tudo que eu tinha na vida estava dentro desta casa. Eu tenho um sentimento profundo de dor. Estou falando da cadeira de quem também está perdendo tudo, sentindo na pele. Eu já vi muitas enchentes onde vivo, mas desse tamanho ainda não tinha visto.

Morava há quantos anos lá?

Eu morava nesse bairro há 40 anos, nessa casa fazia 18 anos. Já tínhamos enfrentado enchentes, mas em nenhuma delas as águas chegaram a três metros, como dessa vez. Foi muito rápido e não deu tempo para salvar nada, só consegui salvar o gato e o cachorro das crianças. E a família do senhor? Estão superando, eu sou casado há 25 anos, com a Daniela, tenho um filho de 43, um de 36, um de 28, uma menina de 15 e um menino 6. O guri está sofrendo muito, não levou um brinquedo sequer, a minha menina perdeu tudo que tinha da própria festa de 15 anos e está muito triste. Eu estou ficando em uma casa em outro bairro, uma casa pequena, meio que acampando, não tem as coisas (eletrodomésticos). A gente também ganhou muita coisa das pessoas. É muito difícil a vida assim, eu estou falando de mim, mas fico imaginando a vida dos meus vizinhos também. Você volta para casa e não tem mais nada, é uma dor no peito, é um desespero total.

E o nível do rio?

Estamos instalando bombas que devem melhorar a situação, elas vão nos ajudar muito na agilidade da retirada da água. O que a gente quer mesmo é trabalhar para salvar o nosso povo, como fizemos na covid.

O que foi discutido com o governador e o ministro Pimenta?

As decisões mais urgentes foram buscar bombas para Canoas, Porto Alegre e São Leopoldo, para poder drenar as águas. Outra decisão será ajudar os municípios a preencher as documentações para conseguir obter os recursos. Outra questão é que temos tido problemas com a arrecadação de alimentos, temos tido problema em levar alimentação suficiente para quem está na casa de amigo. Outro problema é que estamos com problemas de comprar alimentos. Os nossos mercados estão com dificuldade de oferta desses alimentos: arroz, feijão e outros. Em todos os mercados estamos com problemas de abastecimento.

O que pode ser feito para esse problema de abastecimento?

O governo federal trazer esse alimento ou por aeronaves ou por corredores de caminhões para trazer esses alimentos para o nosso estado, as estradas como a BR 116 em São Leopoldo estão complicadas porque a água não está baixando, o nível do Rio Sinos está diminuindo em torno de 2,5 centímetros por hora, está muito pouco, está muito lento. Na reunião de hoje, solicitamos que o governo federal realize o transporte de gêneros alimentícios para o estado.

E a resposta do governador Eduardo Leite?

O governador também anunciou alguns repasses, com o pix para a conta dos atingidos, como a proposta do governo Lula de passar o recurso direto para as famílias, para as pessoas, para o CPF, sem passar pela burocracia do estado. O governo do estado tem feito sua parte, mas ainda fica aquém do que precisamos. Ele está fazendo o papel de governador, mas, por enquanto, as respostas para as questões urgentes ainda são muito pouco. Por enquanto, só o governo federal tem mandado recursos.

O senhor segue com esperança?

Sim, a gente vai reerguer a cidade, eu tenho certeza disso, temos muita disposição e força de vontade. As pessoas não precisam perder as esperanças. A gente tendo a vida, a gente vai conseguir. Precisamos recuperar a esperança de que temos muita solidariedade. Meu pai dizia que Deus tem muito mais para dar do que para tirar.

Prefeito de Capão da Canoa (RS), Amauri Germano

  •  Prefeito da Capão da Canoa, Amauri Germano

    Prefeito da Capão da Canoa, Amauri Germano
    Mayara Souto/CB/D.A Press

Repentinamente, um fluxo muito grande de pessoas migrou para o Litoral Norte. Como as prefeituras estão lidando com essa situação? O governo do estado já acenou com ajuda financeira ou outros recursos?

O que a gente tem visto e escutado, no que tange os municípios que foram atingidos diretamente (pelas chuvas), é que vai ter aporte do governo do estado e federal para ajudar essas famílias que perderam tudo. Mas os municípios não atingidos também sofrem reflexos, porque o nosso orçamento não estava previsto para receber todas essas pessoas que vieram. Essas pessoas que estão no nosso município vão acabar utilizando da assistência e inclusão social, e aí vai dobrar o investimento. Uns vão ficar e vão utilizar a nossa rede de educação, onde nós já estávamos quase finalizando a lista de espera. Agora, a lista aumentou de novo. Tem as crianças com autismo, as com encaminhamento médico, tem os idosos. Isso tudo será analisado pelo nosso grupo técnico e também pelo Ministério Público, que vai avaliar se eles vão ficar onde estão ou vão retornar, se o município vai ter que abraçar essas causas. Nós não teremos um recurso a mais do estado, segundo as informações que eu tenho, apesar das minhas reivindicações.

E o governo federal?

O governo federal, da mesma forma, vai ajudar quem está dentro do decreto de calamidade pública, o que não é o nosso caso, porque não fomos atingidos. Precisamos, talvez, analisar em qual decreto nós poderíamos nos enquadrar. Vamos ter que deixar de fazer investimento em algumas áreas para poder priorizar o atendimento daquelas que, neste momento, são necessárias. Todos os que estão vindo para cá não são os culpados, ninguém está dizendo isso. Nós temos que abraçar os nossos irmãos porque poderíamos ser nós. Como nós não fomos atingidos da mesma maneira, temos que estender a mão. Só que estamos lidando com dinheiro público, onde nós somos fiscalizados 24 horas, então nós temos de ter todo o cuidado e utilizar dos mecanismos jurídicos possíveis para atender àquelas pessoas que chegam aqui, abraçam a gente e começam a chorar dizendo que perderam tudo. A gente só tem que achar uma maneira de ajudar.

O que poderia ser feito, por parte dos governos estadual e federal, para auxiliar os municípios que não foram atingidos, mas estão recebendo desabrigados?

Acho que o governo do estado tem que repensar a sua política pública e seu plano de atuação no estado. Os municípios, principalmente do Litoral Norte, que sempre triplicam no verão e, no período de inverno, duplicam, precisam de um projeto para ver o que de fato é importante para nós porque, muitas vezes, tem recursos que vêm para algumas áreas que não são tão interessantes. A gente precisa de um apoio na área da saúde, que venham mais recursos, que tenha um projeto mais aprofundado sobre isso.Também que o governo do estado possa atuar na área da educação, porque a responsabilidade estadual é o Ensino Médio, mas também os anos finais do Ensino Fundamental. Cada vez mais, eles querem passar isso para os municípios. E isso também vai nos colocando contra a parede porque a gente não tem perna para tudo isso. A parte da medicação também é importante abrir um pouco o leque e atender melhor, estar mais próximo dos prefeitos. A secretaria estadual de turismo poderia olhar para os municípios (do litoral) e também fazer um projeto que nós pudéssemos ter uma ajuda de quem já sabe na questão da geração de emprego e renda, utilizando as nossas lagoas. Já o governo federal tem que responder com mais rapidez aos pedidos. Quando a gente faz pedidos de escola, o governo leva de seis meses a um ano para dar “ok” na construção de uma escola. Dar maior atenção também para os cursos técnicos, que tenham mais e se ater nos repasses da educação, saúde e assistência.

Qual a logística que o senhor está usando para acolher as pessoas?

Aqui, nós devemos ter atendido já em torno de 5 mil pessoas que estão pedindo apoio na busca por alimentação, roupas, tanto para crianças, quanto para adultos, jovens e idosos. Isso fez com que nós montássemos um espaço de acolhida na escola Leopoldina para atender às pessoas. Criamos fluxo de recebimento de doações e, ao mesmo tempo, despachando o necessário para as famílias que chegam ali vindas das enchentes. As pessoas estão em abrigos feitos por igrejas. Fizemos parceria também com cartório de registro, onde a pessoa encarregada colocou à disposição também no ginásio um ponto para fazer os documentos gratuitos.

Quantas pessoas estão na cidade atualmente?

Nós devemos estar com 200 mil pessoas que vieram para cá, além dos desabrigados, porque tem apartamento, casas. Isso, por um lado, é positivo, gera emprego, renda, o comércio trabalha mais, e isso facilita para muitas pessoas terem emprego. E isso não é diferente dos outros municípios da região, todos receberam muita gente, não tanto quanto nós no sentido de que tem também as pessoas que vieram porque têm suas casas.

 

Fonte: Correio Braziliense

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