Entre grades e laços familiares: o debate das saidinhas no Brasil

presos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís
Articulista defende a manutenção do veto do presidente Lula ao fim das saídas dos detentos para visitar familiares; na imagem, presos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís (MA)

Um projeto de lei, incontáveis versões e o recente veto presidencial jogaram luz sobre um dos recortes mais sensíveis da segurança pública brasileira: a possibilidade de os presos condenados em regime semiaberto saírem às ruas para visitar a família em datas comemorativas.

Num contexto em que a superlotação não é posta em xeque, o direito à saída temporária mexeu com os ânimos de uma parcela da população, cansada da lentidão do Estado, e de viver com medo da violência que bate à porta –em casa ou fora dela.

Quando apresentei o PL 583, na Câmara dos Deputados, em 2011, as grades já conectavam aqueles que temem a insegurança e os causadores dos crimes que motivaram essa busca por proteção. Só que, diferentemente do PL 2.253 de 2022 –cujo veto movimentou as mentes dos tomadores de decisões do país nos últimos dias, o projeto original não previa a extinção das saídas temporárias, mas o seu aperfeiçoamento.

É importante destacar que, depois de a proposta originária passar por tantas modificações, o crivo presidencial devolveu à legislação toques mais humanos. E, antes que alguém acredite que este se trata de um texto de esquerda, cabe salientar que as “saidinhas”  é um direito constitucional criado na época da ditadura militar. Foi o general João Batista Figueiredo quem sancionou, primeiramente, o benefício que faz parte da Lei de Execução Penal, em vigor desde 1984 no país.

As saídas temporárias –que hoje são discutidas como retrocesso– nasceram vestidas de “notáveis fatores para atenuar o rigor da execução contínua da pena de prisão”, como justificou o então ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel. Citando o livro Prisión abierta, de Elias Neuman, a autoridade destacou o “considerável avanço penalógico e os seus resultados sempre proveitosos, quando outorgados mediante bom senso e adequação da fiscalização”.

Isso porque, diante da inexistência da prisão perpétua ou pena de morte no Brasil, negar o acesso à gradativa reinserção na sociedade seria um contrassenso. O movimento de devolver, mesmo que de forma homeopática, o convívio com o mundo externo serve como mecanismo de distensionar o ambiente prisional, estimulando o bom comportamento e desencorajando novos crimes.

É nessas saídas, conquistadas na progressão de pena, que o apenado se reconecta com os pais, mulher e filhos, conversa com os amigos e revive a sensação de pertencimento à comunidade, além de acessar práticas rotineiras, comuns a todos, como ir ao médico ou ao dentista.

Há, ainda, o caso das mães que reencontram os filhos, de quem foram separadas quando eram recém-nascidos ou crianças de colo. Vínculo que, por vezes, foi rompido aos 6 meses de idade do bebê e encontra no benefício a oportunidade de se restabelecer.

Não se pode esquecer que a proteção à família, por parte do Estado, deve ser garantida a todos os cidadãos brasileiros. Defender que os “presos não podem, em determinado tempo, visitar a família” não seria, inclusive, uma afronta aos valores cristãos?

Num país em que os próprios congressistas, em 2015, constataram, ao fim da Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário, que “a ressocialização no Brasil ainda se encontra em estágio muito incipiente, sendo inexistente em diversos de nossos estabelecimentos penais”, o contato com a família –além do ambiente de trabalho e estudantil, já assegurados por lei– imprime a dimensão restaurativa da Justiça.

Ainda sobre a decisão do presidente Lula, orientada pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, entre vetos e sanções cabe ressaltar a inclusão dos autores de crimes hediondos com violência ou grave ameaça na esteira daqueles a quem o benefício não é aplicável. Na prática, o autor de um roubo à mão armada, antes liberado para as “saidinhas”, não deixará mais a unidade prisional antes do cumprimento da pena. Entram nessa lista crimes como estupro, latrocínio, sequestro, tráfico de drogas e exploração sexual de menores.

Vale destacar também que esse mecanismo de readaptação não é automático. Há um processo que antecede a saída –voltada aos apenados em progressão de pena, no regime semiaberto (que já cumpriram 1/6 da pena total) e que tenham bom comportamento.

Para além dos pré-requisitos, caso cometa um novo crime durante a “saidinha”, o preso perde o direito às saídas temporárias, regride para o regime fechado e é somada uma nova pena à original, referente ao delito mais recente. A reincidência é um obstáculo sacramentado pela lei, perante a qual todos são iguais.

O rigor ganhou reforço com a sanção presidencial que introduziu o exame criminológico como exigência para a progressão de regime, inclusive para o semiaberto, com a finalidade de avaliar os aspectos psicológicos e sociais antes da reinserção na sociedade. Movimento a favor da manutenção das “saidinhas”, alimentado pela certeza de que os ganhos superam as perdas quando a pauta em questão é a luz no fim do túnel que encoraja quem busca deixar a penumbra social.

Com a 3ª maior população carcerária do mundo, o Brasil reunia 649.592 pessoas atrás das celas em junho de 2023. Destas, 120.244 tiveram direito à saída temporária no 1º semestre do ano passado. A maioria (93,47%) não abandonaram o sistema prisional nesse intervalo. Os dados são do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Num recorte ainda mais específico e recente, um levantamento da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo mostrou que, dos 34.547 presos do Estado que saíram no Natal do ano passado, 4,53% não voltaram às unidades prisionais e só 0,23% dos beneficiados foram flagrados cometendo crimes durante o período.

O baixo percentual nas taxas de não retorno e de cometimento de novos crimes convida a sociedade a refletir sobre a importância da manutenção do veto em prol de um direito da esmagadora maioria dos detentos que respeitam as regras, em que pese o respiro de humanidade como um reforço para a certeza de não ceder ao assédio intramuros das organizações criminosas.

Ignorar os dados oficiais é legislar pela exceção. Impulso nutrido por paixões e ideologias, pelo desejo de fazer justiça se abstendo do preceito que a rege: a humanidade. Apelar para o direito penal de emergência, numa tentativa de apaziguar as inquietações e a revolta despertadas por essas minorias, abre margem para medidas radicais, que beiram a inconstitucionalidade e que excluem um ponto fundamental a ser lembrado: leis são feitas por seres humanos para seres humanos.

Os mesmos seres que não deixariam de tomar um antibiótico, caso esse tivesse 5% de ineficácia comprovada cientificamente, e muito menos deixariam de caminhar na rua pelo risco de morrer atropelados. As decisões não podem ser pautadas pelas suposições, com chances ínfimas, inflamadas pelo temor.

É justo ponderar que no Rio de Janeiro, por exemplo, os números reforçam a necessidade de aprimoramentos no sistema de monitoramento durante as saídas temporárias. As estatísticas fluminenses denunciam que 14,29% dos apenados não voltaram ao sistema depois da “saidinha” do Natal de 2023. Isso é inaceitável e precisa mudar.

Apesar do avanço no sentido da implementação das tornozeleiras eletrônicas, a exigência do uso de dispositivos eletrônicos para rastreamento efetivo, defendido por mim, desde o projeto original, permitiria não só diminuir os episódios de fuga, como elevar o percentual de recaptura e evitar os gastos em operações de busca.

Diante de uma nova votação para manter ou derrubar o veto presidencial, o questionamento é ferramenta essencial para a efetiva mudança no cenário da segurança pública: a extinção das saídas temporárias diminuiria a criminalidade ou tensionaria, ainda mais, um sistema sobrecarregado, em que o contato com a sociedade devolve lapsos de lucidez aos apenados? Desejo que a sede de vingança e as convicções ideológicas não (re)condenem a maioria que já cumpre o castigo estatal determinado.

Focado em dados concretos, avaliados com rigor técnico, e guiado pela boa política, defendo a manutenção do veto como uma sinalização, um holofote a iluminar as melhores soluções legislativas –para que nenhum dos elementos envolvidos fique no escuro.

Fonte: Poder360

© 2024 Blog do Marcos Dantas. Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo deste site sem prévia autorização.