Entenda a crise entre Lula e grupos indígenas: demarcação de terras vira dor de cabeça para o governo

Lula e a ministra Sônia Guajajara receberam indígenas no Planalto
Lula e a ministra Sônia Guajajara receberam indígenas no Planalto — Foto: Cristiano Mariz

Promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante a campanha eleitoral de 2022, a demarcação de terras indígenas virou uma dor de cabeça que inclui objetivos não cumpridos, cobranças de lideranças indígenas e atritos com governadores e o Congresso. Logo após a vitória eleitoral, Lula constituiu uma equipe para levantar 14 territórios que aguardavam apenas um decreto do presidente para concluir o processo de demarcação — e se comprometeu a tirá-las do papel nos 100 primeiros dias de governo.

Havia uma percepção de que essa seria a parte mais fácil do trabalho do então recém-criado Ministério dos Povos Indígenas e da Funai, uma vez que havia ainda outras 247 terras em processo pendente de homologação, segundo o Instituto Sócio Ambiental (ISA). Mas a realidade política se impôs e, passado um ano e quatro meses, quatro desses 14 territórios não foram homologados e se encontram em um impasse.

Quarenta lideranças se reuniram na última quinta-feira com o presidente no Palácio do Planalto, após uma passeata que levou milhares de indígenas à Praça dos Três Poderes. Essa foi a primeira manifestação no local desde os atos golpistas de 8 de janeiro. Diante de faixas que diziam “sem demarcação não há democracia” e “os nossos direitos não se negociam”, eles saíram de lá frustrados com a falta de uma previsão para a solução das demarcações pendentes. Durante o trajeto, as lideranças declaravam que não adiantava nada ter um Ministério dos Povos Indígenas (MPI) se o órgão não tinha autonomia financeira para tocar a pauta dos povos originários.

— Agradecemos muito a criação do MPI. Mas somente criar e falar que tem um ministério não adianta. Precisamos garantir orçamento e equipe — declarou Kleber Karipuna, liderança da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Uma semana antes, diante de uma plateia de indígenas no Ministério da Justiça, Lula tentou remediar a morosidade nas demarcações e jogou a responsabilidade no colo dos governadores.

— Eu sei que isso frustrou alguns companheiros. Fiz isso porque temos um problema e é melhor a gente tentar resolver antes de assinar. Temos algumas terras que estão ocupadas. Algumas por fazendeiros, outras por pessoas pobres. E alguns governadores pediram um tempo para a gente saber como vamos tirar essas pessoas — disse o presidente, exibindo um grande colar indígena no peito.

A explicação não foi bem recebida pela plateia que ostentava o cocar e as pinturas corporais

— Fiquei muito indignado naquele dia. A fase de conversa com os governadores já passou há muito tempo. Isso não cabia neste momento, era só assinar — disse Dinamam Tuxá, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), movimento responsável pelo Acampamento Terra Livre montado em Brasília na semana passada.

A terra indígena de Morro dos Cavalos, em Palhoça (SC), é uma das quatro que ficaram fora da homologação. Ocupada por cerca de 300 indígenas da etnia Guarani Mbya e Guarani Ñandeva, o território está no centro de uma disputa política que se arrasta há mais de uma década. O estado é governado por Jorginho Mello (PL), ex-senador e aliado de Jair Bolsonaro. Foi sobre essa reserva que Lula declarou que era preciso “dar mais tempo” para evitar que a demarcação virasse um caso de polícia.

O governo do estado, prefeitos, deputados e senadores da bancada catarinense alegam que o processo de demarcação dessa reserva foi fraudado e que os indígenas só começaram a ocupá-la nos anos 90 — portanto, depois do marco temporal. Aliás, a tese do marco se iniciou com outra terra indígena de Santa Catarina, a do povo Xokleng, que foi expulso de sua reserva e não a ocupava em 1988.

O caso de Morro dos Cavalos motivou uma contestação no Supremo Tribunal Federal em 2014 e uma CPI contra a Funai em 2016. Os parlamentares da bancada ruralista acusavam algumas ONGs de levarem indígenas do Paraguai para firmarem residência no local. Os servidores da Funai, em contrapartida, argumentavam que, antes da vinda dos portugueses, o povo guarani ocupava vastas faixas de terra do Sul e Sudeste do Brasil, Paraguai, Bolívia e Argentina, e até os dias atuais faziam esse deslocamento transfronteiriço.

Em nota, o governo de Santa Catarina citou a decisão em que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), paralisou as ações que questionam a validade da lei do marco temporal, aprovada no Congresso, para defender a paralisação do processo de demarcação em Morro dos Cavalos. A determinação do ministro interrompe o andamento dos processos espalhados pelo país até que a Corte se manifeste definitivamente sobre o tema e instala um processo de mediação e conciliação, que terá como centro o próprio STF.

“A Procuradoria-Geral do Estado (PGE/SC) informa que aguarda a manifestação definitiva da Suprema Corte após a decisão do ministro Gilmar Mendes (…). A tese (…) é um dos argumentos do Estado de Santa Catarina na ação ajuizada em 2013 em razão das ilegalidades registradas no processo de demarcação da Terra Indígena, que apresenta, entre outros pedidos, a garantia da participação efetiva do Estado em todas as etapas do processo administrativo demarcatório”, diz o texto.

Dentro do governo Lula, o principal alvo de críticas dos indígenas é o ministro da Casa Civil, Rui Costa, que, segundo eles, estaria segurando as demarcações para utilizá-las como moeda de negociação com o Parlamento. Os indígenas atribuíram ainda ao ministro a falta de empenho do governo em reverter a derrubada do veto à lei do marco temporal. Em um manifesto, a Apib afirmou que essa lei tem estimulado atos de violência dentro das terras indígenas, como o assassinato a tiros da pajé Nega Pataxó em Caramuru Paraguaçu, na Bahia.

Fonte: O Globo

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