Em seis meses de governo, Milei desmantela décadas de políticas feministas e de gênero na Argentina

Mulher passa diante de cartazes de mulheres desaparecidas, durante protesto contra a violência de gênero na Argentina
Mulher passa diante de cartazes de mulheres desaparecidas, durante protesto contra a violência de gênero na Argentina — Foto: Luis ROBAYO / AFP

Na Argentina, onde a cada 35 horas ocorre um feminicídio, e que no último ano registrou 272 mortes de mulheres vítimas de violência de gênero, o governo de Javier Milei fechou os braços do Estado dedicados a enfrentar esse problema, enquanto avança nos cortes de verbas dos programas destinados a oferecer proteção e apoio às mulheres.

As medidas tomadas pela administração do ultradireitista nos primeiros seis meses de governo foram criticadas por organizações feministas e de direitos humanos locais e internacionais. Mas Milei e seus colaboradores parecem dispostos a aprofundar as iniciativas contra o feminismo e contra o que chamam de “ideologia de gênero”: sabem que isso lhes permite se diferenciar de seus rivais políticos e garantir o apoio de suas bases, especialmente homens jovens.

Ao lado de decisões de forte impacto simbólico, como a mudança do nome do Salão das Mulheres na Casa Rosada — anunciada no dia 8 de março, Dia da Mulher —, ou a eliminação do uso da linguagem inclusiva na administração pública, Milei dissolveu o Ministério das Mulheres, Gêneros e Diversidade. Ao assumir o cargo, em dezembro do ano passado, e como parte de suas medidas para reduzir o tamanho do Estado, determinou que a pasta fosse reduzida a uma subsecretaria de Proteção contra Violência de Gênero. Mas o órgão não chegou a 180 dias de existência, uma vez que foi fechado em definitivo na última sexta-feira. E não exatamente por ter feito um mau trabalho.

O Escritório da Mulher da Corte Suprema de Justiça revelou na semana passada que “foram identificadas 250 vítimas diretas de feminicídio” na Argentina em 2023, incluindo “cinco vítimas de travesticídio/transfeminicídio”. A esses números se somam 22 vítimas de “feminicídio vinculado”, como são denominados os homicídios cometidos com o objetivo de causar dano à mulher. Segundo os dados oficiais, o número de mortes aumentou 11% em relação a 2022. Na última década, foram ao menos 2.446 vítimas de feminicídio.

“O ajuste fiscal não pode ser feito às custas das mortes e outras formas de violência discriminatória contra a população”, afirmaram em comunicado conjunto diversas entidades da sociedade civil, incluindo a Anistia Internacional, o Centro de Estudos Legais e Sociais, e as fundações Fundar e Fundeps. Elas destacaram que “as políticas públicas para casos de violência de gênero são parte de um compromisso que o Estado argentino tem historicamente no marco de acordos internacionais” e leis vigentes, e exigiram do governo “que esteja à altura da urgência e defina imediatamente uma estrutura adequada para dar resposta a um problema que não tem fim”.

Na Organização dos Estados Americanos (OEA), a comissão de especialistas do Mecanismo de Acompanhamento da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres (Mesecvi) manifestou sua “profunda preocupação” com o fechamento da subsecretaria. O órgão apontou que, caso não seja revertido, isso “impactará diretamente as capacidades estatais já afetadas por cortes anteriores, comprometendo seriamente a obrigação do Estado de proteger as mulheres”.

Elizabeth Gómez Alcorta, ex-ministra das Mulheres, aponta que essa não é a primeira vez desde o retorno da democracia, em 1983, que a Argentina não tem uma “institucionalidade específica de gênero”. Entre as consequências da medida, cita “a ausência total de políticas ligadas a violências por gênero, de projetos e programas de prevenção, de assistência e acompanhamento de vítimas e parentes, e de políticas vinculadas à igualdade e diversidade”. Para a ex-integrante do Gabinete de Alberto Fernández (2019-2023), a decisão de Milei é coerente “com um projeto que entende que o Estado é um problema, e não parte da solução”.

— É um projeto político que deixa à deriva aqueles que têm alguma necessidade ou vulnerabilidade, entendendo que isso é um problema individual — afirma.

Gómez Alcorta ainda considera que o atual governo promove, em questões de gênero e diversidade, “uma restauração conservadora muito feroz, como não vimos desde a ditadura millitar”, e que se trata de “uma marca registrada de um projeto que tem à frente um presidente que é, além de violento, misógino”.

A eliminação do Ministério das Mulheres e da subsecretaria contra a Violência de Gênero foi acompanhada pela redução ou eliminação de iniciativas estatais ligadas a questões específicas das mulheres e diversidade de gênero. Por exemplo, no contexto de uma inflação interanual de quase 300%, o governo congelou o orçamento do Programa Acompanhar, fonte de apoio a mulheres e pessoas da comunidade LGBT+ vítimas de violência.

O governo Milei encerrou ainda o Programa Registradas, que impulsionava a formalização de trabalhadoras domésticas, e que, entre 2021 e 2023, registrou 34.235 mulheres. Dentro do projeto de lei de bases discutido no Congresso, o Executivo defende o fim da moratória que permitiu que 440 mil mulheres se aposentassem mesmo sem cumprir as exigências legais, por terem se dedicado ao trabalho doméstico enquanto não tinham um emprego em carteira. Também foi fechado o Instituto Nacional contra a Discriminação (Inadi).

— Todas as políticas relacionadas à igualdade de gênero eram planejadas e implementadas dentro da estrutura do Ministério das Mulheres, e produto de 40 anos de crescimento das instituições de gênero no país. Agora se perdeu a capacidade de unificar essas estratégias para atacar um problema absolutamente estrutural, como as desigualdades de gênero e as violências de gênero — disse a socióloga María de las Nieves Puglia, diretora da área de gênero da Fundar.

Ela adverte ainda que o maior perigo da perda de institucionalidade é que, como muitas das iniciativas eram voltadas à prevenção, pode ocorrer um aumento dos casos de violência.

— A disputa específica com o feminismo e com as políticas de gênero permite a Milei e seus seguidores que construam a direita da direita — observa Carolina Justo von Lurzer, doutora em Ciências Sociais e pesquisadora do Conicet.

Não é apenas um contraste com o anterior governo peronista, que elevou a questão de gênero ao nível ministerial, mas também com o do conservador Mauricio Macri (2015-2019).

— Os intelectuais deste governo são propagadores de ideias contra a ideologia de gênero. Eles não são uma invenção argentina, e têm uma influência muito importante em nível global. Têm uma pegada no conservadorismo religioso e outra em argumentos biológicos ligados a uma certa ideia de natureza — explica Von Lurzer.

No discurso libertário, ela detalha que “as políticas públicas de gênero se tornaram o paradigma do Estado que gasta mal os recursos e os destina de maneira ruim”.

— Há uma cadeia semântica que relaciona o feminismo ao gasto, ao roubo e ao Estado. Para os libertários, o marco legal que garante a igualdade entre homens e mulheres já existe, e as pessoas precisam desenvolver os potenciais de forma individual. As desigualdades estruturais são minimizadas, levando a entender que as políticas públicas para enfrentá-las são desnecessárias — pontua Von Lurzer. Uma lógica que levaria também a deslegitimar a existência do racismo ou de qualquer forma de discriminação.

Fonte: O Globo

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